(Gone Girl, EUA, 2014)
145 min.
Direção: David Fincher.
Elenco: Ben Affleck (Nick Dunne), Rosamund Pike (Amy ), Neil Patrick Harris (Desi Colings), Tyler Perry (Tanner Bolt), Carrie Coon (Margo Dunne), Kim Dickens (detetive Rhonda Boney)
Sinopse: “O amor é a infinita mutabilidade do mundo; mentiras, ódio, até mesmo assassinato, tudo está atrelado a ele; é o inevitável desebrochar de seus opostos, uma magnífica rosa com um leve cheiro de sangue” – Tony Kusher, THE ILLUSION, no prefácio do livro Garota Exemplar, de Gillian Flynn.
No dia em que completa cinco anos de casado, Nick Dunne, sócio-proprietário de um bar chamado simplesmente de “O Bar” (que administra com a irmã gêmea, Margo), volta para sua casa às margens do rio Mississipi e encontra a porta escancarada e o gato Bleecker do lado de fora.
Ao entrar na casa, Nick percebe cacos de vidro no chão, a mesa de centro quebrada, livros espalhados e uma tesoura afiada no meio da confusão.
Amy, a esposa de Nick, havia sumido.
Crítica de Alysson Oliveira, do site Cineweb: 4/5
http://www.cineweb.com.br/filmes/filme.php?id_filme=4620
Na superfície, Garota Exemplar, novo filme de David Fincher, baseado no romance homônimo, é sobre as dificuldades da vida a dois, sobre as concessões e sacrifícios necessários para manter um casamento. A mulher de Nick Dunne (Ben Affleck, eficiente), Amy (Rosamund Pike, assustadoramente bem), desaparece exatamente no dia em que completam cinco anos de casamento – “bodas de madeira”, explica ele, que em todos os anos foi capaz de dar um presente relacionado à simbologia da data. Nesse ano, no entanto, não conseguiu pensar em nada. Sua mulher, ao contrário, parece ter armado toda a comemoração – eles faziam uma caça ao tesouro – antes de sumir.
O romance escrito por Gillian Flynn, também autora do roteiro, combina uma narrativa intercalada com os pontos de vista do marido e da mulher, que, mais tarde, convergem numa das várias reviravoltas do romance. No filme, as idas e vindas não são tão bem resolvidas, mas Fincher é um diretor técnico o suficiente para criar a tensão na construção das cenas e personagens. Eles vivem numa pequena cidade do Missouri, onde Nick é sócio da irmã gêmea, Margo (Carrie Coon), num bar, depois de perder o emprego numa revista em Nova York. São tempos de crise financeira, shoppings fechados que se tornaram abrigos para viciados e mendigos, lojas e casas abandonadas. A crise financeira também atingiu os Dunne, cujas brigas já eram constantes – e não só por conta da falta de dinheiro.
Quando a investigação começa, não demora muito para a responsável, detetive Rhonda (Kim Dickens), começar a desconfiar da participação de Nick no desparecimento da mulher. Aqui, “Garota Exemplar” começa mostrar, então, qual é o seu tema: a boa e velha sociedade do espetáculo. Logo uma horda de jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos estão dando plantão em todos os lugares por onde Nick passa.
A narrativa de Amy parte direto de seus diários. Por meio de flashbacks, descobre-se que ela é a inspiração para uma famosa série de livros infantis escritos por seus pais e protagonizados pela Amy Exemplar, calcada nela mesma – o que leva o marido Nick a dizer: “Eles roubaram sua infância”. Também dos diários, surge uma versão do desenrolar da história de amor do casal. Mas, a toda hora nos lembra Fincher, essa é uma sociedade da aparência, e a verdadeira Amy é uma tremenda de uma atriz – ela sabe o mundo em que vive (atua?) e dá exatamente aquilo que o seu público quer. Se eles querem sangue, é sangue que eles vão ter.
Fincher também sabe proporcionar exatamente aquilo que seu público quer. Se em Seven, ele entregou a cabeça da mocinha dentro de uma caixa de papelão, aqui a mocinha não é mais a ingênua – nem o mocinho tão heroico. Ainda assim, Garota Exemplar parece tomar mais partido de Nick do que de Amy. Vê-se boa parte da história pelo seu ponto de vista – mas ele também, com ajuda de um advogado (um surpreendente Tyler Perry), sabe fazer o jogo dos abutres da mídia sedentos por sangue. O casamento, a relação humana, são apenas a ponta do iceberg nesse filme, em que Fincher faz um retrato cândido de nossa sociedade governada pelas imagens – aquela que criamos para nós, aquela que criam de nós – e pelos jogos de poder – do qual sempre sai vitorioso quem tem mais dinheiro. Aqui não é diferente.
Crítica de Marcelo Hessel, do site Omelete: 4/5 http://omelete.uol.com.br/garota-exemplar/cinema/garota-exemplar-critica/
A insistência do diretor David Fincher, junto à Fox, de ter Rosamund Pike como a protagonista de Garota Exemplar (Gone Girl, 2014) se justifica ao fim do filme. A atriz londrina dá vida, com sua beleza fria e sua figura fantasmagórica, a mais uma heroína trágica do cinema de Fincher, a exemplo de Ripley ou Lisbeth Salander, brutalizada e desumanizada para aprender a sobreviver no mundo dos homens.
É como uma anti-heroína que Amy Dunne (Pike) se revela ao espectador no filme, que a roteirista Gillian Flynn adapta fielmente de seu próprio romance. Amy desaparece na manhã do seu quinto aniversário de casamento, na casa que divide com o marido Nick (Ben Affleck) na cidadezinha natal dele, no Missouri. À medida em que Nick vai se tornando, com os dias, o principal suspeito do sequestro (ou homicídio), ele percebe que talvez seja o verdadeiro alvo.
O filme mantém tanto a estrutura quanto as viradas do livro, e embora tenha se falado muito, durante a produção do longa, que o final poderia ser alterado, o desfecho de Garota Exemplar só faz pequenos ajustes em relação ao material original. Notadamente, Fincher estende até o fim o circo midiático em torno de Amy e Nick, para dar um fecho mais apropriado ao teatro de aparências que está no centro da trama - tanto o teatro da investigação, com a manipulação da opinião pública, quanto o teatro do casamento, com suas projeções de expectativas.
O jogo de aparências perde um pouco o vigor se o espectador já souber da principal reviravolta do livro, mas isso não tira do filme a força do seu comentário sobre os relacionamentos. É o filme mais cínico de Fincher desde Clube da Luta e, assim como o longa de 1999, é do cinismo que vem o seu potencial cômico. Ben Affleck entende perfeitamente esse potencial e cria um Nick Dunne ridículo na medida, sem cair na caricatura.
Assim como a Amy de Rosamund Pike pode ser um símbolo, na mão de um Fincher sempre em flerte com a misoginia, da Mulher Pragmática dos dias de hoje, o Nick de Ben Affleck é a síntese do homem emasculado, numa América igualmente falida, enquadrada pela câmera de Fincher em ruas desertas, em letreiros de lojas fechadas. É curioso que o diretor, tão apegado a seus filtros esverdeados, não filme tanto as cenas de exterior diurnas com essa pegada estetizante. É como se Fincher não precisasse mexer muito no que vê para deixar os EUA ainda mais desesperançosos.
Luiz Carlos Merten, para o Caderno 2 do Estadão
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