Wednesday, May 16, 2007

Estréias de 29 de junho de 2007

500 ALMAS
(Brasil, 2005)
Documentário - 109 min.
Direção: Joel Pizzini
Elenco: Paulo José, Matheus Nachtergaele.
Sinopse: Considerados extintos nos anos 1960, os guatós foram redescobertos pela missionária Ada Gambarotto, nos anos 1970, a partir da dona Josefina, uma descendente da tribo, que foi o fio da meada para a construção de todo um mosaico da etnia dispersa pela região pantaneira.
O documentário vai até a Alemanha, no Museu Etnográfico de Berlim, investigar o acervo do pesquisador Max Schmidt, que fez no início do século XX os primeiros estudos da cultura e da língua guató, depois retomados pela lingüista brasileira Adair Palácio.
Conhecidos como canoeiros e nômades, esses índios vivem em relação constante com a água e em contínuo deslocamento.
Um filme é um documentário etnopoético sobre a presença e ausência de memória, construído a partir do universo mítico e existencial dos índios Guatós, que hoje lutam para reatar com sua ancestralidade.
Ao recriar o imaginário dessa cultura milenar, o filme reflete sobre a importância da língua e da terra para a formação da identidade étnica.
O filme mostra também uma encenação do julgamento do assassinato hediondo de um líder guató (Celso), ocorrido em 1982 na Ilha Ínsua, próxima à localidade de Amolar, em Corumbá, no Pantanal sul-matogrossense, cuja causa permanece sendo um mistério (crime racial, político ou passional?) e cujos assassinos nunca foram punidos. Celso estava empenhado em garantir a posse da Ilha aos nativos, em disputa judicial contra os fazendeiros locais.
O filme acompanha também cenas do cotidiano dos cerca de 500 guatós remanescentes, que sobrevivem da caça (capivara), da pesca (piranha, dourado) e das criações (galinha) e plantações de subsistência (cana-de-açúcar, milho).
A cultura guató também sobrevive nos artesanatos feitos com palha e com a madeira da gameleira, utilizada para construir uma viola típica.
Bastidores: - Ganhou 4 troféus Candango no Festival de Brasília, nas seguintes categorias: Melhor Fotografia, Melhor Edição, Melhor Trilha Sonora e Melhor Som.
- Ganhou o Margarida de Prata de Melhor Longa-metragem, concedido pelo CNBB.
- Ganhou o prêmio de Melhor Documentário - Júri Oficial, no Festival do Rio.
- Ganhou os prêmios de Melhor Documentário, Melhor Fotografia - Documentário, Melhor Edição - Documentário e Melhor Som - Documentário, no ParatyCine.




QUARTETO FANTÁSTICO E O SURFISTA PRATEADO
(Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer, EUA, 2007)
Direção: Tim Story
Elenco
: Chris Evans (Johnny Storm/Tocha Humana), Ioan Gruffudd (Reed Richards/Sr. Fantástico), Jessica Alba (Sue Storm/Mulher Invisível), Julian McMahon (Victor Von Doom/Dr. Destino), Kerry Washington (Alicia Masters), Michael Chiklis (Ben Grimm/Coisa).
Sinopse: Duas notícias dividem as manchetes dos principais jornais do planeta: as pertubações climáticas ao redor do planeta e a proximidade do casamento do Senhor Fantástico com a Mulher Invisível (Reed Richards e Susan Storm).
Richards consegue encontrar um tempinho entre um e outro compromisso pré-nupcial para investigar as causas das alterações climáticas e descobre que elas têm origem alienígena.
No dia da badalada cerimônia de casamento, o ministro matrimonial é interrompido por uma forte ventania que derruba até um helicóptero no local do casório. O tumulto todo é causado pelo enigmático e intergaláctico arauto Surfista Prateado, servo de Galactus, o devorador de mundos, que chegou à Terra para preparar o planeta para ser o próximo a ser devorado (planetinha meio indigesto ultimamente, convenhamos).
Johnny Storm, o Tocha Humana, bota fogo em seu traje de gala e sai em perseguição ao Surfista, que seria considerado uma ameaça à Segurança Nacional e acabaria provocando uma insólita aliança forçada do Quarteto com Victor Von Doom, o Doutor Destino, que sabe qual é o ponto fraco do ser interplanetário.
Mas o Doutor Destino, como era de se esperar, tem lá seus planos secretos...
Notas da Crítica:
Roberto Sadovski, SET: 8/10
Arianne Brogini, Sexy: 7,5/10

Airton Shinto, Shintocine: 7/10
Celso Sabadin, Cineclick: 7/10
Alex Xavier, Guia do Estadão: 6,5/10
Edgar Olimpio de Souza, Boca a Boca: 3/5
Franthiesco Ballerini, Jornal da tarde: 6/10
Marcelo Forlani, Omelete: 3/5
Neusa Barbosa, Cineweb: 3/5
Odair Braz Junior, Rolling Stone: 3/5
Rodrigo Carreiro, Cine Reporter: 3/5
André Gordirro, SET: 5/10
Cássio Starling Carlos, Guia da Folha: 2/4
Demetrius Caesar, Cineplayers: 5/10
Laís Cattasini, Cinema com Rapadura: 5/10
Marco Aurélio Canônico, Folha Ilustrada: 2/4
Mariane Morisawa, Isto É Gente: 5/10
Andy Malafaya, Cineplayers: 4/10
Emilio Franco Jr., Cineplayers: 4/10
Geraldo Jr., Cine Net: 2/5
Orlando Margarido, Veja SP: 2/5
Pablo Villaça, Cinema em Cena: 2/5
Rui Brazuna, Premiere: 2/5
Rui Pedro Tendinha, Premiere: 2/5
Vitor Moura, Premiere: 2/5
Sandro Macedo, Guia da Folha: 4/10
Paulo Roberto Selbach Jr., Baú de Filmes: 3/10
Christian Petermann, Guia da Folha: 1/4
Inácio Araujo, Guia da Folha: 1/4
Pedro Butcher, Guia da Folha: 1/4
Sérgio Rizzo, Guia da Folha: 1/4
Suzana Amaral, Guia da Folha: 1/4
A. Pascoalinho, Premiere: 1/5
David Mariano, Premiere: 1/5
Tiago Pimentel, Premiere: 1/5
Daniel Pilon, Pilog: 0/4

O BALCONISTA 2
(Clerks 2, EUA, 2006)
Direção: Kevin Smith
Elenco: Brian O'Halloran (Dante Hicks), Jeff Anderson (Randal Graves), Rosario Dawson (Becky), Jason Mewes (Jay), Kevin Smith (Silent Bob), Trevor Fehrman (Elias), Jennifer Schwalbach Smith (Emma Bunting), Jason Lee (Lance Dowds), Scott Mosier (Pai transtornado), Wanda Sykes (Esposa), Earthquake (Marido), Ben Affleck.
Sinopse: A loja de conveniência Quick Stop sempre foi o centro do universo dos balconistas Dante Hicks (Brian O'Halloran) e Randal Graves (Jeff Anderson), ambos com 33 anos. Quando o lugar é destruído num incêndio, os dois têm que achar não só um novo lugar para matar o tempo como também novos empregos. Sem nenhuma ambição na vida, eles vão parar na lanchonete Mooby's. É lá que dão continuidade aos debates acalorados em que tentam decidir quem é melhor: George Lucas, Peter Jackson ou Jesus.
Notas da Crítica:
Rodrigo Salem, SET: 8,5/10
Christian Petermann, Guia da Folha: 8/10
Arianne Brogini, Sexy: 7/10
Celso Sabadin, Cineclick: 6/10
Mário "Fanatic" Abade, do Omelete: 3/5
Remio Ximenes, Cine Net: 3/5
Bruno Yutaka Saito, Folha Ilustrada: 2/4
Alex Xavier, Guia do Estadão: 5/10
Alysson Oliveira, Cineweb: 2/5
Odair Braz Jr., Herói: 4/10
Franthiesco Ballerini, Jornal da Tarde: 3/10
Pablo Miyazawa, Rolling Stone: 1,5/5
Orlando Margarido, Veja SP: 1/5
Daniel Pilon, Pilog: 1/4

MULHERES DESESPERADAS
(Amazones, Holanda, 2004)
Comédia - 100 min.
Direção: Esmé Lammers
Elenco: Pierre Bokma (Zeger), Monic Hendrickx (Sam), Theo Maassen (Achilles), Marcel Musters (Ramon), Jochum ten Haaf (Van Trigt), Monique van de Ven (Kers), Nadia van de Ven (Kamermeisje), Georgina Verbaan (Reneetje), Susan Visser (Lot).
Sinopse: Em uma pequena cidade da Holanda vivem quatro mulheres que enfrentam problemas. Lot (Susan Visser) é separada e cria sozinha seus dois filhos. Sam (Monic Hendrickx) tem um marido desempregado e precisa desesperadamente de 1800 euros para não perder seu único bem: a casa em que mora. Reneetje (Georgina Verbaan) é viciada em drogas. Kers (Monique van de Ven) é viúva e ainda não se conforma pela morte do marido. Todas vivem problemas financeiros, o que faz com que decidam se unir para assaltar um banco. Porém nem tudo será tão simples como elas planejam.


O TANGO DE RASHEVSKI
(Le Tango des Rashevski, França/ Bélgica/ Luxemburgo, 2003)
Direção: Sam Garbarski
Elenco: Hippolyte Girardot, Ludmila Mikael, Michel Jonasz, Daniel Mesguich, Natan Cogan
Sinopse: Matriarca de família de judeus novos da Bélgica falece e, com ela, morrem suas tradições. Perdidos dentro dos rituais judaicos, que desconhecem, os Rashevski se vêem em uma luta para definir sua religião e sua união. O surgimento de uma família não-judia no enterro complica as coisas, enquanto romances florescem e segredos do passado são desenterrados.
Notas da Crítica:
Neusa Barbosa, Cineweb: 3/5
Orlando Margarido, Veja SP: 3/5
Erico Fuks, Cinequanon: 2/5
Anahi Borges, Cinequanon: 2/5
Angela Andrade, Cinequanon: 2/5
Marcia Schmidt, Cinequanon: 2/5


FORA DO JOGO
(Offside, Irã, 2006)
Direção: Jafar Panahi
Roteiro de Shadmehr Rastin e Jafar Panahi. Música de Korosh Bozorgpour. Montagem de Jafar Panahi.Elenco: Sima Mobarak-Shahi, Safdar Samandar, Shayesteh Irani, Mohammad Kheir-abadi, Ayda Sadeqi
Sinopse: No Irã as mulheres são proibidas de assistir a jogos de futebol nos estádios.
Uma menina fanática por futebol precisa se disfarçar de homem para entrar no estádio e assistir a um jogo decisivo da seleção iraniana nas Eliminatórias Asiáticas contra o Barein valendo uma vaga na Copa do Mundo de 2006.
Porém, antes mesmo do apito inicial ela é reconhecida por seguranças do estádio e levada para um local próximo, onde encontra diversas torcedoras na mesma situação: vestidas como homens e impedidas de entrarem no estádio. Elas tentarão utilizar todos os truques ao seu alcance para escapar e assistir ao jogo.



Site Oficial: http://www.sonyclassics.com/offside/index.html



17 comments:

airtonshinto said...

SÉRGIO ALPENDRE, da Revista Paisà:
"As primeiras imagens poderiam sugerir uma inclinação de 500 Almas a um desejo de impressionar pela beleza da paisagem, pelos planos de natureza, sempre fáceis de angariar simpatia das platéias. Mas há algo de estranho nessas imagens, algo que procura identificar um poder pictórico, uma sincronização de cores, um festival de luz que possa transparecer do cenário natural. Como ir em busca do último resquício de uma tribo - os Guatós - que existe no pantanal matogrossense evitando o entorno, a maravilhosa confluência de água e mata que existe por ali? Como não se render ao poder do céu refletido na água se ali reside todo um mistério que insiste em pairar sobre a região, e que era algo inerente ao filmar, ao desbravar essa natureza irrepresável? Fala-se em piranhas no filme, fala-se em jacarés, em animais selvagens, em pescadores, em tradições e costumes que mal conhecemos. Durante boa parte do filme somos levados à documentação de uma forma de vida, de uma cultura que se moldou com o tempo, ficando domesticada, próxima da cidade, mas mais próxima ainda da beleza natural do pantanal. Depois vem a incidência de alguns elementos de ficção. Seria o ponto fraco do filme, não fosse a habilidade em deixar esses elementos triunfarem parcialmente, e apenas na segunda metade do filme, depois que o registro da vida por ali ficasse bem claro em nossas retinas. Em 500 Almas, a ficção entra de forma a quebrar algumas barreiras. Ela se impõe de maneira anti naturalista, com Paulo José vivendo vários papéis num fundo enigmático e teatral. O embate se torna, assim, a própria razão de ser do filme. O enfrentamento surge como válvula de invenção, em um projeto que já estava marcado pelo inebriante. Joel nos convida o tempo todo a questionar nossa própria idéia de natureza indomável, mas só nesse final ficcional deixa isso claro. Como os índios Guatós, somos deixados à mercê das imagens que procuram o sentido dessas pinturas divinas. Como eles, sentimos vontade de nos perder por ali, nas imagens captadas por Mário Carneiro, ouvindo eternamente a bela trilha composta por Lívio Tragtenberg. É um caminho interessante e imbricado o que Joel Pizzini nos propõe. Quer nos dar a conhecer a cultura dos Guatós, que era considerada extinta, mas não nos dá todas as ferramentas para que isso aconteça. É um cinema filiado ao pensamento, e tanto melhor que a verdade sobre essa tribo escondida não nos seja fornecida embalada e pronta para consumo. A descoberta continua para além do filme. "

airtonshinto said...

NEUSA BARBOSA, do site Cineweb:
"O documentário "500 Almas" apresenta a quase milagrosa redescoberta dos guatós, povo indígena que chegou a ser dado como extinto nos anos 1960, mas que perdura na região do Pantanal desde o século 16.
O registro feito pela Funai do suposto desaparecimento aconteceu em parte pelo fato de os indígenas serem nômades, tendo mais capricho na feitura de suas eficientes canoas, escavadas de um único tronco de árvore, do que na de suas casas.
O principal motivo, porém, foi a dispersão dos índios a partir da segunda metade do século 20, devido a conflitos com brancos, como criadores de gado no Pantanal.
O momento mais dramático foi o assassinato do líder Celso Guató, em 1982, quando lutava pela demarcação de uma reserva, na Ilha Ínsua, na fronteira com a Bolívia.
A partir de 1977, surgiram notícias de que este povo continuava a existir, mesmo que disperso. Graças especialmente ao trabalho de uma religiosa católica, a irmã Ada Gambarotto, foi possível identificar vários grupos no Mato Grosso do Sul, ainda que só os mais velhos falem a língua nativa, que é estudada por uma linguista (Adair Pimentel Palácio).
Fugindo de um formato didático, o filme dirigido pelo carioca Joel Pizzini retrata a vida destes indígenas, que assumem diferentes graus de assimilação à civilização branca, mas sempre com algum vínculo com sua cultura original.
A maior comunidade vive na Ilha Ínsua, que foi demarcada como sua reserva depois de longa batalha judicial.
O documentário traz informações sobre a aparição dos guatós na história do Brasil, como quando foram retratados pelo pintor francês Hercule Florence, da expedição do embaixador russo, o barão de Langsdorff, no século 19. Ou como quando foram estudados, pela primeira vez a fundo, pelo etnólogo alemão Max Schmidt, no começo do século 20.
O etnólogo levou grande quantidade de objetos feitos por eles ao Museu Etnográfico de Berlim, um dos locais visitados neste documentário.
As imagens de arquivo destes índios foram filmadas pelo marechal Cândido Rondon em suas expedições, também no começo do século passado.
Intercalando as belas imagens dos guatós em seu ambiente natural, coloca-se o ator Paulo José, funcionando como narrador e comentarista.
Ao lado de Matheus Nachtergaele, Paulo José encena um trecho da peça "Controvérsia em Valladolid", do roteirista e dramaturgo francês Jean-Claude Carrière, que cedeu os direitos para uso do filme.
A peça se refere, justamente, à polêmica levantada no século 16, sobre se os indígenas tinham alma ou não e faz uma dura crítica à violência do processo de colonização.
"500 Almas", que demorou três anos para conseguir espaço no circuito de cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, foi vencedor de quatro prêmios técnicos no Festival de Brasília de 2004. Pizzini ficou conhecido por trabalhos de curta e média-metragem, como os premiados "Caramujo-Flor" (1988), "Enigma de um Dia" (1996) e "Glauces -- Estudo de um Rosto" (2001)."

airtonshinto said...

CARLOS ALBERTO MATTOS, do site Criticos.com.br:
"No princípio é o magma. Terras e águas, sombras e reflexos, música e retalhos de vozes em guató, alemão e português. Não sabemos onde estamos, exceto que é no início de alguma coisa. Um filme que começa, um mundo que se desvenda devagar. Os sentidos vão se formando aos poucos, como ecos que se agarram às paredes e principiam a formar figuras. Um homem no mato, um homem num museu, uma mulher num barco. A narração do Gênesis repercute ao longo de todo o filme, como ondas.
Tudo é líquido em 500 Almas, da própria topografia do Pantanal à steadicam que flui ao redor dos personagens. A estrutura mesmo do filme sugere uma corrente entre vasos comunicantes, com temas e informações correndo à margem de qualquer linearidade didática. Há uma curiosa seqüência em que Joel Pizzini adota procedimento convencional de depoimentos em continuidade para narrar o bárbaro assassinato de um líder guató por caçadores de jacarés em 1982. Essa linguagem parece estar ali somente para enfatizar sua ausência no resto do filme, onde imperam o encadeamento poético, a metáfora e as ressonâncias.
Ninguém vai sair da sala de projeção sem saber que os índios guatós foram considerados canibais no século 16, redescobertos como nação pelo etnógrafo alemão Max Schmidt, dados como extintos na década de 1960 e “ressuscitados” de novo como cultura mesclada, esfarelada, quase totalmente esquecida. Ninguém vai deixar de saber que eles têm barba de chinês, não usam adjetivos e acreditam que um dia aquela água toda explodiu e formou a grande baía onde vivem. Mas essa introdução ao universo físico e espiritual dos guatós nos chega não com a linguagem dos cientistas, mas com a cadência dos poetas. Manuel de Barros ilustra bem essa diferença ao falar do idioma guató, que o encantou não pelo significante das palavras, mas pelo seu toar. Pizzini fez um filme sobre o tom audiovisual do Pantanal, o percutir das falas, latidos, sons de caça. Prenhe de razão, ele chama isso de “etnopoética”.
Esse cineasta prodigioso parece imune ao banal e ao gratuito. Cada passo de sua criação atende a necessidades poéticas do tema ou das personagens. Em 500 Almas, ao mote da água (e suas ligações com “alma”) somam-se outros que emanam do mundo guató. A edição do filme (de Idê Lacreta) remete tanto a vasos comunicantes como ao trançar da palha e à coleta de cacos com que os guatós vêm tentando reconstruir e manter sua memória cultural. Isso, porém, longe de significar uma mera sujeição da linguagem cinematográfica à expressão indígena, estabelece um diálogo com ela.
Joel Pizzini não se furta a “dirigir” os índios, fazê-los posar diante das câmeras de Dib Lutfi e Hélcio “Alemão” Nagamini, sob a direção de fotografia do “pintor” Mário Carneiro. Mais que ouvi-los, o filme quer construir com eles uma pequena mitopoética. Para isso, sublinha o caráter épico da reconquista da ilha Insua, retomada utópica para uns e símbolo de retrocesso para outros. No plano do hipertexto, liga o destino dos guatós à tradição protecionista de Rondon, às discussões coloniais sobre a identidade espiritual dos índios (representada por trechos da peça A Controvérsia, de Jean-Claude Carrière), ao interesse romântico dos alemães pela vida natural (Siegfried, Goethe) e até aos arquétipos bíblicos da comunicação (a Torre de Babel).
500 Almas é tanto um filme sobre índios como um filme sobre etnógrafos. Estamos no reino da pesquisa, da tradução e do resgate/construção da memória. Esses procedimentos ecoam no mesmo diapasão fragmentário da vida indígena. Mas estamos, sobretudo, no reino do cinema. Eis aqui um objeto puramente cinematográfico que recusa tanto a submissão ao real e a “pureza” documental como os adereços de videoarte tão em voga.
No que diz respeito à importância do som, o filme se avizinha de Aboio, de Marília Rocha, e Diário de Naná, de Paschoal Samora, outros docs onde a invenção arrazoada marca tanto a banda sonora como as imagens. Mas no que toca à sua arquitetura geral, 500 Almas está mais próximo de uma expressão oriental, ideogramática – ou Idê-ogramática?. Isso, não por acaso, também vem dos guatós. As pausas, silêncios e operações mentais sugeridas pela montagem têm um tempo e uma qualidade de comunicação pictórica que fazem desse filme o mais oriental do cinema brasileiro em não sei quanto tempo. "

airtonshinto said...

LILA FOSTER, da Revista Cinética:
"Na língua guató não existe adjetivação. Quando algo precisa ser qualificado, os índios guatós recorrem sempre a ações. Da mesma forma, tentar definir o que é 500 Almas – documentário poético? poesia visual? docudrama? filme etnográfico? – talvez não seja o melhor caminho para dar conta em palavras do primeiro longa-metragem de Joel Pizzini.
500 Almas também se define por uma ação: a tentativa de reconstrução da cultura guató, uma tribo indígena do Mato Grosso do Sul considerada extinta na década de 60 até a redescoberta de uma população remanescente, porém dispersa. Quem começou a juntar os fragmentos da cultura Guató foi missionária italiana Ada Gambarotto que, trabalhando na região, conseguiu localizar os índios remanescentes espalhados pelo Pantanal. Adair Pimentel, uma lingüista pernambucana, deu continuidade a esse trabalho reconstruindo a língua guató com a ajuda de uma das únicas índias dispostas e relembrar a sua língua de origem. Esses dados são importantes porque essas três mulheres funcionam como elos fundamentais para a reconstrução do passado e a mitologia do povo guató e a condição atual de vida da população remanescente.
Não que exista uma cisão entre esses dois tempos, muito pelo contrário: o filme nunca se aterá a uma temporalidade estável. O passado existe porque alguém deseja lembrá-lo ou quando, mesmo involuntariamente, é atualizado no presente através de falas, imagens, narrativas. É exatamente isso que o filme assume: na fala dos seus entrevistados (uma índia que não quer lembrar da sua língua, mas revela o seu passado no medo de onça); nas fábulas narradas através de leituras de Manoel de Barros e nas lindas imagens dos rios e das florestas; em toda a sua extensa pesquisa histórica; nos vários personagens de Paulo José que distanciam somente para trazer o gesto do soldado, do missionário e do juiz mais carregados ainda de sentido; na lembrança emocionada de um canto; no trabalho silencioso de dois índios que habitam a ilha Ínsul que representa a história de resistência do índio Celso Guató.
Esta rede complexa da memória vai sendo tecida por montagem vertical: som e imagem realizam trocas constantes. A gravação das entrevistas de Adair, na qual a professora pergunta pela palavra em português e a índia responde com o termo na língua guató, surge como um guia para as imagens, sem que nunca uma tenha primazia sobre a outra. Escutar a palavra rio é evocar a importância das águas, das canoas, dos rios para o povo guató. As palavras que vão sendo esquecidas também apontam para as transformações: um cacique que se torna evangélico, as diferentes perspectivas de índios que eram de uma mesma etnia, a inserção das famílias nos arredores das cidades. A língua talvez seja a fonte mais rica de uma cultura porque nela tudo se cruza: um termo é capaz de condensar todo o espírito de um povo e a sua transformação no tempo.
E, assim como não existem adjetivos para os guató, a sua língua também não expressa o possessivo. É possível afirmar que filme de Joel Pizzini é também um filme de Idê Lacreta (montadora), Mario Carneiro (fotógrafo) e Lívio Tragtenberg (músico) tamanha é a importância do trabalho de cada um. A organização fluída do material bruto deste documentário não poderia acontecer sem a beleza da fotografia e dos enquadramentos e o diálogo constante com a trilha musical e os efeitos sonoros. Existindo ou não um método de trabalho pré-estabelecido, o importante é que cada uma dessas funções cumpre em pequena escala o que o filme realiza como um todo: baseado numa pesquisa extensa de imagens, sons, pessoas e material histórico ele é capaz de informar sem dar diagnósticos e muito menos conferir autoridade para qualquer discurso.
Quando aparecem trechos do filme do Major Thomaz Reis sobre a Comissão Rondon é possível vuslumbrar as belas imagens ali contidas, mas lembrar também do semblante desconcertante de uma índia ao ser vestida. Porque a linguagem do cinema é capaz de espelhar o que é visível, mas também o que subjaz a cada cultura. E 500 Almas é a imagem da beleza e do respeito à complexidade do passado e do presente da cultura guató. "

airtonshinto said...

CID NADER, do site Omelete:
"Como poderia ser classificado 500 Almas, longa do diretor Joel Pizzini? Pensando em categorias de locadora: ficção, documentário ou documentário com elementos ficcionais? Quando há dúvida na hora de classificar, como neste caso, fica evidente que o diretor transita numa esfera à parte do que se imagina como normalidade no cinema atual.
Os filmes de Pizzini normalmente se distanciam do facilmente classificável. Sua obra tem uma coerência e ousadia estética que aponta para a arte fina, bem elaborada, um grande artista com uma visão plástica muito particular do cinema; um "poeta imagético". Ele tem construído sua carreira de maneira muito mais vinculada ao mundo dos curtas-metragens, mas sempre muito próximo de uma narrativa que procura eximir-se da culpa que acarretaria o comodismo, enveredando na busca de outros modos de contar "histórias"; e nesse aparentemente eterno processo, percebeu como poucos que dá sim para contá-las através de imagens, músicas, colagens, poesia, vagarosidade (no melhor dos sentidos), decupagem; passou a colocar em prática as possibilidades que talvez somente o cinema ofereça, e que parecem assustar outros autores.
Pode até parecer engraçado se construir um filme de modo não obrigatoriamente conduzido via narração - como é o caso de 500 Almas - quando o próprio trabalho parte do pressuposto de que a "língua", o modo "oral", talvez seja o maior elemento de identificação, de união, de manutenção dos povos, de uma civilização. Pizzini parte dessa idéia universal - aditivando-a de outros elementos como a música, alguns costumes, instrumentos físicos - para contar como foi possível perceber que a tribo dos índios Guatós, um antigo, milenar, povo da região do Pantanal mato-grossense, não havia sido extinto da face da Terra como se apregoava desde a década de 60.
Quando resolveu investigar, com seu modo muito particular de trabalho, a verdade dessa afirmação que falava em não mais remanescentes da tribo de índios Guatós, o cineasta percebeu que além da ajuda valiosa de uma missionária, um padre e de alguns outros "entendidos" no assunto, ele precisaria entender o resgate de palavras e do modo de falar dos Guatós. Tribo caracterizada pelo instinto nômade, foram facilmente "perdidos" por quem se interessava em algum tipo de proteção aos povos nativos da pátria Brasil. Como não mantinham tradição de propriedade e não se vinculavam a terras ou espaços únicos, por um instante sumiram do mapa e foram dados como extintos.
E até por conta desse eterno deslocamento, não mantiveram tradição de relacionamento mais restrito com os seus, acabando por se miscigenar além do imaginado - o que também resultou numa espécie de falta de reconhecimento próprio.
A história que o diretor conta deles é recheada de lirismo e poesia - Pizzini sabe como fazer isso. Mas não há um excesso de imaginação - e isso é ponto a favor do filme - no trabalho para "poetisar" e "ludicidar" o assunto. Sim, o filme é esplendidamente fotografado e montado num ritmo que por vezes beira o onírico. As passagens são aglutinadas de modo a capturar o espectador pela emoção originada da constatação de quão o simples pode ser o belo; e suficiente.
Mas não há invenção. Quando se opta pela explicitação de algumas palavras recitadas por remanescentes - sempre com dúvidas quanto ao real significado ou sobre a pronúncia (sim, aí se percebe nitidamente que se eles não foram extintos totalmente, o que sobrou de autoconhecimento ficou muito nebuloso, indefinido - isso num "amplo" aspecto populacional, num extrapolar de pequenas famílias, as tais 500 almas). Quando se percebe que a mesma palavra que designa "galinha preta" também o é para "céu noturno" (a palavra única simplifica o dado que refere à escuridão, ao negro), por exemplo, percebe-se que o trabalho estará tomando a decisão de se amparar nas singelezas e simplicidades mais facilmente perceptíveis dos Guatós e de sua cultura, para delinear seu verdadeiro rumo.
O diretor tem a capacidade inquestionável de trabalhar com registros "poéticos" como poucos, e, como já citei, tem feito disso sua marca registrada. Mas o que é mais notável nesse belo trabalho é perceber que ele sabe fazer isso sem se apoderar das nuances em benefício de uma estética própria. Muito ao contrário. O que ele faz é saber se ajustar aos temas que conta. No caso de 500 Almas, talvez isso fique mais nítido por se tratar de um longa-metragem. Talvez, porque a história seja linda mesmo. Talvez, porque identifica o traço da linguagem - principalmente, até porque não é somente nesse traço que o filme se ampara - como o maior e mais "pronto" modo de reconhecimento a remexer em nossos instintos, sentimentos, mais interiores.
Ah: e o tal lado ficcional também é bastante correto, não invasivo e respeitador."

airtonshinto said...

ELIANE BRUM, do site Época On Line:
"Guató era o nome de uma etnia indígena oficialmente extinta. Era o que dizia a Funai em 1960. Na década seguinte, porém, missionários descobriram que eles não haviam desaparecido. Existiam. “Não todos juntos, como no começo do mundo, quando tinha bastante índio. Mas de um em um”. 500 almas é o número de guatós espalhados pelo Pantanal mato-grossense – e o nome do primeiro longa do documentarista Joel Pizzini.
Não é “mais um documentário de índio”, como alguns diriam com ar blasé. Do começo ao fim, 500 almas é, como os guatós, uma composição delicada de vozes só aparentemente irreconciliáveis - e imagens belíssimas. A edição não se rende à linearidade. Evoca, intencionalmente, um dos elaborados trançados de bambu dos guatós: várias linhas se entrelaçam na busca de um significado jamais apreendido totalmente porque algo sempre vai escapar.
Na escolha de não botar créditos na maioria dos depoimentos, os índios que falam são tão somente guatós. E os estrangeiros - daqui ou de fora - são mais familiares que estranhos. Ao preferir não identificar os “especialistas”, o diretor não dá a eles o poder de explicar os guatós. Resiste assim ao vício de parte do cinema documental - e a uma praga que viceja na imprensa em geral. Mesmo Lévi-Strauss é só mais uma voz na algaravia humana que dá a toada do nosso mundo – nosso como meu, seu, dos guatós.
Nação milenar, os guatós eram nômades. Sua casa era a canoa. Em sua língua, lembrada aos fragmentos porque a maioria fala quase só o português, não há a expressão de posse. Não existe a possibilidade de dizer, em guató, “essa água é minha”. Nação sem chefe, precisaram inventar um cacique para negociar com a Funai o território, a Ilha Insua, perto da fronteira com a Bolívia. Sobre o Pantanal – “ainda um feto, uma pré-coisa” – os guatós resvalam em suas canoas com a consciência de que a vida escorre com as palavras.
500 almas fala sobre memória e identidade. Esquecer é deixar de existir. E nisso também nossas vozes são menos dissonantes do que supomos. A identidade dos guatós é cheia de lacunas de silêncio. Mas esse silêncio no filme não soa como vazio, mas como ecos de memória. É um silêncio feito de som do esquecimento.
O que se é quando se esquece o que se é? A identidade é dada em igual medida pelo que se lembra e pelo que apaga? O que se perdeu de você em mim? Como as palavras e as lembranças, a identidade pertence, paradoxalmente, ao território do difuso. Essa compreensão faz a excelência de 500 almas. Joel Pizzini conseguiu fazer um filme em que a linguagem cinematográfica generosamente se oferece à língua esquiva dos guatós. Torna-se sua exata expressão mesmo na vastidão horizontal do silêncio pantaneiro."

airtonshinto said...

LUIZ ZANIN,do blog do Estadão:
"Sociedade machista não dá bola para as mulheres
Há muitas maneiras de apontar a discriminação contra a mulher nos países islâmicos, e Jafar Panahi escolheu uma das mais originais, apelando para a paixão universal pelo futebol. Fora de Jogo conta a pequena história de um grupo de garotas que queria assistir a uma partida da seleção do Irã pelas eliminatórias da Copa do Mundo. E qual o problema? Problema imenso, pois as torcedoras não podem entrar no estádio, tido como 'lugar de homem'. Não é que sejam desaconselhadas, o que já seria absurdo. São impedidas por força da lei.
O filme põe em cena um grupo de meninas que resolve desafiar a legislação antiquada e entrar no estádio de qualquer jeito. Pela força? Não porque elas não a tem. Precisa ser no jeitinho. E só encontram um caminho, disfarçar-se de homens.
Eis aí o enredo mínimo desse filme simpático, levemente crítico, e a favor de uma liberalização maior do regime dos aiatolás. Claro, há uma série de desenvolvimentos nessa história que, de tão pequena, daria apenas um curta-metragem se não fossem algumas variações sobre o tema. Variações que, por mais bem sacadas que de fato sejam, não se mostram capazes de fornecer organicidade a uma idéia de tiro curto.
O clima é aquele que se conhece do cinema iraniano típico, desde que ele passou a ser divulgado no Ocidente no início dos anos 1990. Temos uma mistura de inocência e malícia, com personagens que falam o tempo todo e não parecem entender-se entre si. Há uma curiosa relação entre os homens, que são aqueles que realmente dominam e controlam o país, e os 'outros', ou seja, crianças e mulheres.
Você pode ver aí uma situação literal e outra figurada. De fato, as crianças são tuteladas, protegidas, e não apitam em nada. O mesmo se pode dizer em relação às mulheres. Por outro lado, se pode pensar que nem mesmo os homens comuns podem ter voz muito ativa nesse tipo de regime, a não ser que façam parte da hierarquia do Estado. A distribuição do poder é muito assimétrica e os 'outros' da sociedade tendem a ser vistos como incapazes, irresponsáveis, inaptos para decidir sobre seu próprio destino.
Não por acaso, as crianças foram personagens tão importantes como freqüentes nos primeiros filmes iranianos que chegavam até nós. Mais do que uma preocupação com a infância, essa escolha de personagens infantis reflete uma estratégia dos cineastas. Críticos distraídos costumam dizer que os filmes iranianos só falam em criancinhas sem se dar conta desse expediente dos artistas em uma sociedade vigiada.
Assim, as crianças estavam no centro de vários daqueles filmes e, em especial, num do próprio Panahi, o excelente Balão Branco. Mais tarde, Panahi voltou seu olhar para as mulheres no contundente O Círculo, vencedor do Festival de Cinema de Veneza, um dos três mais importantes do mundo.
Em seguida, veio um filme atípico em sua filmografia, Ouro Carmim, um caso policial contado em flash-back e sem nenhum dos elementos anteriores. Trata-se apenas da história de um entregador de pizzas obeso, que um dia cede à tentação do crime e paga caro por isso. Nessa história policial, contada com ritmo atípico para o diretor, temos um corte vertical - e cirúrgico - da sociedade urbana de Teerã.
Quer dizer, qualquer que seja a temática adotada, ou a linguagem escolhida, Panahi não renuncia jamais em dar um sentido social à sua obra. Dadas as circunstâncias em que trabalha, parece uma disposição heróica, beneficiada, é verdade, pela proteção proporcionada por prêmios em festivais de ponta e portanto reconhecimento internacional.
Com Fora de Jogo a disposição não é diferente. Como quem não quer nada, Panahi vai mostrando os problemas mais graves da sociedade iraniana. E, também, insuspeitos laços de solidariedade entre pessoas que, em tese, estariam em campos opostos. Tudo iria muito bem não fosse uma certa impressão de cansaço sugerida pelo filme. Talvez a fórmula já tenha se desgastado um pouco e Panahi devesse dar um passo, ou vários, à frente. "

airtonshinto said...

NEUSA BARBOSA, do site Cineweb:
"Não é a primeira vez que Panahi, um ex-assistente do consagrado diretor Abbas Kiarostami (no filme Através das Oliveiras, 1994), se volta para a discussão da condição feminina em seu país. No drama O Círculo, que lhe deu o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2001, ele retratava a discriminação que afetava as mulheres desde o seu nascimento, uma vez que o nascimento de meninas mostra-se menos valorizado por boa parte das famílias. Acompanhando um grupo de personagens, inclusive ex-presidiárias, Panahi pintava um retrato amargo do que é ser mulher no Irã.
Em Fora do Jogo, o enfoque é mais leve. Retrata um grupo de moças que procuram entrar no estádio de Teerã, no dia do jogo eliminatório entre o Irã e o Barein. Dessa partida, o Irã saiu classificado para a Copa do Mundo de 2006.
Como se fosse um documentário, o filme usa como locação o próprio estádio, no dia do jogo real. O clima documental é reforçado pelo uso da câmera na mão (pelo diretor de fotografia Mahmoud Kalari) e de atores não-profissionais, prática comum no cinema iraniano.
Assim, Fora do Jogo reproduz a tensão que afeta as moças que são fãs de futebol no Irã e tentam driblar a ridícula proibição de irem aos estádios – que, segundo o cineasta, não é oficial, mas é respeitada à risca, uma vez que foi confirmada pelo falecido aiatolá Khomeini.
Torcedoras fanáticas e mesmo praticantes do esporte - que, ironicamente, não lhes é proibido, respeitadas algumas condições -, elas se disfarçam o mais que podem, pintando o rosto com listras grossas nas cores da bandeira iraniana, cobrindo a cabeça com bonés e escondendo o corpo com roupas bem largas. No processo, contam inclusive com a cumplicidade de alguns rapazes, que até procuram ajudá-las a furar o cerco.
Mesmo assim, a rígida segurança identifica várias delas, que são presas e conduzidas a uma espécie de cercadinho, atrás do estádio. Dali, o máximo que conseguem é ouvir a manifestação da torcida, sem saber ao certo o que acontece no jogo. Devem esperar a chegada de uma viatura que as conduza a uma delegacia, onde chamarão seus pais – outra situação absurda, já que todas são maiores de idade.
Frustradas, as moças confrontam seus guardiões, dois jovens soldados (Safar Samandar e Mohamad Kheirabadi). Argumentam, ora com dureza, ora com diplomacia, para conseguirem sair, deixando-os sem saber o que dizer. Afinal, nenhum deles está muito convencido do valor de sua missão. Eles também querem ver o jogo, o que não podem, tanto quanto as moças. Numa situação sem sentido, os supostos opressores são também oprimidos.
Uma das seqüências mais engraçadas acontece quando uma garota convence um soldado de que precisa ir ao banheiro. Isso cria uma enorme confusão, já que os sanitários do estádio são todos masculinos, evidentemente. Por isso, o militar obriga todos os rapazes a sair, montando guarda para que a moça use um dos toaletes. Sua atitude provoca o maior tumulto e uma pequena surpresa.
Tanto quanto suas personagens, Jafar Panahi também força os limites. Ele não recebeu permissão oficial para filmar no estádio, mas prosseguiu no projeto, fingindo estar filmando outra coisa. Porém, mais do que esta pequena ousadia, é a própria temática de seus filmes que serve de justificativa para sua não-liberação nos cinemas de seu próprio país - o que afetou não só Fora do Jogo, como o citado O Círculo e também o drama Ouro Carmim (2003), todos exibidos no Brasil."

airtonshinto said...

CID NADER, do site Cinequanon:
"O cinema iraniano, que surgiu como um fenômeno há pouco mais de uma década, continua a exportar seus trabalhos para os principais festivais de todo o mundo. Vez por outra surgem, ainda, obras surpreendentes, mas o que fica cada vez mais óbvio é que o grande encanto inicial, causado pelo inusitado da origem e dos motivos a serem contados por um cinema até então inimaginado pelo resto do mundo, se perdeu em meio da enxurrada de obras repetitivas, que procuravam decalcar as maiores e que mais foram premiadas. Uma das certezas que restou de todo esse movimento descobridor foi a constatação da genialidade e superioridade de Abbas Kairostami, um verdadeiro mestre, que teve abandonada a sua condição de diretor unicamente persa – na avaliação de seus apreciadores – para ser transformado num realizador do mundo.
Outra das certezas ganha cada vez mais status de verdade pelo histórico que vai se construindo a partir de suas obras, e atende pelo nome de Jafar Panahi. Surgiu aqui pelo ocidente com a singeleza tocante e atordoante de Balão Branco (1995); confirmou sua qualidade como artista acima da média com O Círculo (2000), obra realizada dentro do que há de mais moderno e inovador em termos de construção formal de uma película atualmente, num trabalho de forte teor político e estonteante narrativa “circular”. Ouro Carmim confirmou a tendência de contador e revelador de um Irã subterrâneo e forçadamente “submergido” adotada pelo diretor como fio condutor de sua trajetória; um filme que mostra realidades, riquezas e pobrezas, “ocidentalizações” comportamentais na grande capital, Teerã, como obra contundente e necessária para se entender o que existe por trás de um regime religioso inibidor e esmagador.
A certeza de que Panahi é o segundo grande diretor em atividade no país ganha, agora, um reforço espetacular: Fora do Jogo. O filme, que revela uma situação inédita quando nos apresenta garotas tentando driblar a rígida fiscalização que tenta proibir sua entrada em estádios de futebol, surge contando mais um assunto que para nós ocidentais pareceria coisa de loroteiro.
No jogo que decidiu uma das vagas asiáticas para a Copa do Mundo da Alemanha, o diretor encontrou o palco e o entorno ideal para contar o que acontece num país dirigido com rigor religioso absurdo pelos Ayatolás. País que foi – nos tempos do “Xá” Reza Pahlevi – um dos primeiros da região a permitir a possibilidade de integração total da mulher na sociedade. Com direitos iguais, possibilidade de trabalhar nas mesmas funções e algo mais. País que agora proíbe: proíbe quase tudo, em nome de Deus, mas com regras criadas por homens. Proíbe as mulheres de serem iguais aos seus companheiros. Proíbe-as de assistir a uma simples partida de futebol sob alegações estapafúrdias. Mas proíbe, também, os guardas que delas tomam conta de traçarem seu futuro como desejariam, ou de se apiedarem da situação impostas às torcedoras. O filme vai muito profundamente ao âmago da questão: revela um país oprimido em suas manifestações mais elementares por um sistema punitivo e retrógrado. E o grande mérito de Jafar é fazer essas denúncias sob “clima” ameno, proporcionado pela maneira encontrada por ele de contar tais tormentos.
Filmado paralelamente a toda a situação da partida, percebe-se nitidamente, em alguns momentos, uma queda na atuação dos protagonistas. Isso porque o filme, genialmente, vai sendo construído durante seu processo de filmagem. Situações especiais surgem a partir dessa opção “estética”: a vibração de policiais e garotas que acompanham o jogo nos estádio quase sem poder vê-lo. O grande momento acontece dentro de uma “Van” e culmina nas ruas, em meio à multidão ensandecida – mas de modo sempre gentil, como que a demonstrar às autoridades que suas atitudes são extremadas e desnecessárias e em meio às bombas de um torcedor fanático e incrivelmente autêntico... Obra de aparência simples, que encerra em seus sub-textos toda a genialidade discursiva de um diretor que tem o que dizer. Tem assuntos a serem contados. Tem um longo caminho a percorrer com seu cinema revelador. "

airtonshinto said...

JAIRO LAVIA, da Revista Paradoxo e Cult:
"Em seus polêmicos longas-metragens O Espelho e O Circulo, Jafar Panahi já demonstrava uma preocupação em retratar o papel opressor, a falta de liberdade e de direito às próprias escolhas dispensados à mulher na sociedade iraniana. Fora do Jogo, seu último filme, retorna ao tema agora sob a ótica do mais brasileiro dos esportes - o futebol.
Por que as mulheres iranianas não podem gostar desse esporte? Por que não podem ter o prazer de ir aos estádios assistir a um jogo da seleção? Estão elas relegadas à submissão masculina? Essa são perguntas colocadas em questão durante todo o desenrolar do filme. Vale lembrar que, em terreno futebolístico, o mesmo espaço é compartilhado, lado a lado, ao direito de xingar e dizer o que quiser.
Já em seu início, nos deparamos com a estranheza de um torcedor no ônibus ao presenciar uma garota [Sima Mobarak-Shahi], cujo rosto está pintado com as cores da bandeira iraniana, e um boné como disfarce para não ser reconhecida. Um pouco antes, um pai está atrás de sua filha, que deixou a escola para assistir a partida que vale pela classificação do Irã para Copa.
Com a chegada ao estádio, típicas situações do cinema iraniano se alternam. Como disponibilizar os personagens em situações indefesas, sempre à procura de algo, ou driblando situações para alcançar seus objetivos, quase sempre simples, mas que se tornam infortúnios diante das tentativas fracassadas. É o cambista zeloso em não vender ingressos, alertando a garota para a multidão de homens que terá pela frente, mas acaba cedendo após inserir um ágil no valor. Ou o frenesi que empurra os torcedores, que coloca a garota num jogo de ataque e defesa, em que precisa estar atenta aos olhares alheios, driblar seguranças para, enfim, conseguir alcançar os portões do estádio.
Com a mal lograda tentativa de ver a partida, ela é colocada num cercado ao lado do estádio, junto com outras torcedoras fanáticas, onde são obrigadas a esperar até o momento em que devem seguir à delegacia. Dentro das possibilidades, só restam a elas unirem a paixão do futebol com a ansiedade de não poder presenciar a partida ao vivo.
Diante de policiais, ora inconformados com a paixão das garotas pelo futebol, ora tentando manter a ordem, é que surgem as situações mais criativas do filme. Uma das torcedoras detidas, com uma personalidade desinibida, afronta os policias e causa espanto ao mostrar um gosto pelas fardas e a vontade de se alistar no exército.
Com a desilusão de quem já perdeu o importante jogo, ela dispara: “Se não posso comer peixe, me dê apenas o enlatado”. O “jogo não visto”, fora de campo, mas no burburinho dos acontecimentos, ganha outras possibilidades de apreciação. Seja nos comentários que fazem entre si sobre os jogadores ou nas tentativas para que um dos policiais faça a narração enquanto acompanha a partida por uma grade. Num determinado momento, uma garota que deixa o estádio após fugir dos guardas, retorna em solidariedade às amigas para contar o que tinha visto. Mais do que isso: ela improvisa um quadrado e posiciona as outras para discutir as táticas futebolísticas.
São elementos como estes que Panahi nos coloca diante de um “jogo invisível", mas que ganha um sabor narrativo apaixonante. Com o povo nas ruas após a vitória, o diretor cria um happening apoteótico que nos parece mostrar que o futebol pode criar uma inversão de valores. Como se, em poucos momentos, esse esporte fosse capaz de dizer que, mesmo numa sociedade intolerante, homens e mulheres são iguais na confraternização. "

airtonshinto said...

CLÉBER EDUARDO, da Revista Cinética:
"Mais uma mudança em Jafar Panahi
Quem acompanha o percurso do iraniano Jafar Panahi está habituado às suas mudanças de registro. O Balão Branco parecia introduzir o diretor no terreno da jornada épica minimalista, centrada na repetição de uma mesma situação miúda, espécie de variação mais singela de Abbas Kiarostami em Onde Está a Casa de Meu Amigo?, com uma criança vivendo pequenas variações de um mesmo acontecimento. O Espelho já mudou completamente: manteve-se a criança e seu deslocamento por Teerã, mas, dessa vez, o diretor radicaliza sua aproximação com Kiarostami, expondo a metalinguagem sem deixar a encenação de lado nessa operação de reflexividade simulada – o que o aproxima, até mais, de Mohsen Makhmalbaf. Já O Círculo nos apresenta, com alto grau de documentarismo (uma característica mais forte em Panahi que em Kiarostami ou em Makhmalbaf), a inserção do autor na política, de maneira nunca tão direta no cinema iraniano, centrando o enfoque na denúncia de maus tratos às mulheres no regime machista e teocrático dos aiatolás.
Fora do Jogo (filme seguinte a Ouro Carmim, não visto) começa com o documentarismo dos filmes anteriores e com a aparência da mesma denúncia feita em O Círculo. No entanto, algo mudou daquele filme para esse, talvez com Panahi, talvez com o Irã, talvez com as mulheres, porque o tratamento é distinto. Talvez Panahi também esteja respondendo, na tela, às críticas de Kiarostami a O Círculo: para Kiarostami aquele filme, ao contrário de seu Dez, não era sobre mulheres do Irã, mas sobre atrizes representando como Panahi via as mulheres no Irã. Ou seja, oprimidas, sem espaço de respiro, sem campo de atuação, sem potência. Fora do Jogo relativiza O Círculo e, embora continue discutindo a censura comportamental regulada por lei, mostra a rebeldia feminina, o prazer da convivência entre elas, a negociação delas com os homens, sem jamais aceitar a condição de subalternas, sem jamais aceitar a ordem das coisas com passividade.
Para expor essa nova visão, ele tem como premissa uma partida de futebol entre Irã e Bahrein, pelas eliminatórias da Copa de 2006, na qual mulheres não podem entrar. E as que entram, conforme o filme mostra, vão ter com a lei. Mostrando de forma hiper-realista o clima no ônibus que leva ao jogo uma menina disfarçada de rapaz, a “muvuca” nas ruas gerada pela partida, a tensão na entrada diante da fiscalização da polícia e momentos no interior do estádio e da própria partida (em plano geral), Panahi obtém ótimos efeitos da convivência entre ficção e acontecimento real (todo o contexto do jogo), mas, talvez por conta do processo de filmagem no calor da hora (do jogo), deixa sua ótima premissa ratear quando o filme pede uma encenação menos solta.
Isso acontece justamente após as meninas serem presas em um cercadinho no estádio, passando a levar conversas ao mesmo tempo tensas e anedóticas com os guardas (uns bobalhões com pequena autoridade), sobretudo para explicar ao espectador estrangeiro as particularidades do regime de proibições às mulheres no Irã, levando as personagens a questionar porque não podem fazer isso ou aquilo. De qualquer forma, se essa falta de rigor fragiliza o ponto de partida, o desleixo narrativo, com as cenas sendo conduzidas por coadjuvantes e figurantes em alguns momentos, dá um frescor à condução do relato, que, assim, evita fixar-se em um protagonista e olha para vários lados em sua evolução.
Sempre com tom afetuoso, às vezes singelo demais, às vezes didático e ingênuo, Panahi tem seus méritos. Um deles é o de não fazer dos guardas um bando de carrascos, mas, sim, mostrá-los como funcionários insatisfeitos do Estado, que não necessariamente assinam embaixo das regras de proibição. Outra qualidade é expor o paradoxo do comportamento das mulheres, que, embora sejam vítimas de um Estado-Nação tirânico em relação à elas, não vacilam em vestir a camisa da seleção e gritar pelo Irã (paradoxo ainda maior se levarmos em conta a importância dada à origem étnica e regional dos iranianos, como fica explícito na escalação ou não do craque Azizi). Talvez não seja um filme marcante na continuidade da obra de Panahi, mas, certamente, é uma obra pautada pela dinâmica de seu processo de realização (mais que outras), gerando assim um contato nosso com os acontecimentos sem muitos filtros ficcionais (ou com filtros às vezes precários nessa função)."

airtonshinto said...

RUY GARDNIER, do site Contracampo:
"A proibição à entrada de mulheres em estádios de futebol gera uma discussão sobre a desigualdade de gêneros, e, portanto, cria um questionamento sobre a justiça na sociedade iraniana. A primeira impressão é: já vi esse filme, e algumas vezes. Mas atenção! Por trás das câmeras está um homem chamado Jafar Panahi, que já foi considerado novo gênio do cinema iraniano, já foi considerado um mero diluidor de seu mestre, Abbas Kiarostami, e também já foi considerado, ironia das ironias, um has-been. Ainda que seus longas-metragens não denotem um estilo tão sólido quanto os filmes de Kiarostami, há neles interesse suficiente para acompanhar sua trajetória com gosto e cuidado. Se seu primeiro longa-metragem, O Balão Branco, surgia no cenário dos lançamentos nacionais um pouco para consolidar o lugar-comum que apraz preguiçosos de que cinema iraniano é criancinha chorando por algum objeto perdido, o filme seguinte, O Espelho, já revelava uma aplicação formal que retirava o filme das convenções mais rasteiras do naturalismo e, tanto pela adesão total ao percurso da menina-protagonista quanto pelo preciso acabamento, conferiam um caráter bastante distintivo ao filme. O Círculo, ao invés de perseguir apenas uma menina, criava um painel de como a mulher é tratada desde o momento do nascimento até a morte, integrando e largando as diversas personagens ao longo da narrativa, criando um verdadeiro personagem-coletivo (como O Encouraçado Potemkin ou Aopção). Pronunciava-se aí uma faceta nova em seu cinema, uma veemência poítica inesperada no seio de um cinema que, apesar de sempre muito político, escondia suas preocupações sociais em tramas que a princípio pouco tinham de contestadoras. Esse foi um passo que, possivelmente, até pode ter inspirado Kiarostami a fazer a obra-prima que é Dez.
Em Fora de Jogo, há muito dos filmes anteriores: as personagens femininas, o costume social que se transforma numa possibilidade de questionamento, a precisão do dispositivo. É possível mesmo acreditar que se trate de um filme-soma, de uma espécie de síntese de seu trabalho. Mas a sensação que se tem vendo o filme é, ao contrário, a de que temos diante de nós um diretor que pensa unicamente nas soluções dramáticas mais adequadas a seus projetos, e que isso é muito mais do que uma assinatura estilística ou temática. A estética de Jafar Panahi abre seu cinema para o mundo, ao passo que outras estéticas só fazem adequar o mundo a ritmos, atmosferas e recorrências estilísticas de autor que o fecham em um cineaquário. E é essa disposição de fazer um filme colado ao movimento do mundo, rodar um filme como roda o mecanismo de uma máquina, que torna o cinema de Jafar Panahi tão instigante.
O material, como já dissemos, não é novo. Filme-processo, corre-corre, estamos já num engarrafamento, um pai tenta resgatar sua filha que está num dos ônibus que vão em direção ao estádio onde o Irã disputará contra o Bahrein uma partida que pode lhe valer a classificação para a Copa do Mundo de 2006. Em seguida, vemos um ônibus de torcedores, acontece uma confusão, briga, todo mundo sai de seu lugar, menos uma pessoa, uma figura toda cheia de roupa, de traços delicados, vestida como moleque, boné para trás, roupas largas. Espectadores, anteciparemos por alguns instantes a reação de um menino no mesmo ônibus: trata-se de uma menina que precisa se disfarçar de homem para entrar no estádio. Clandestina de primeira viagem, ela observa como fazem outras meninas para burlar a segurança, e é por intermédio dela que nós também passamos as grades do estádio. Ela continua seu percurso até esbarrar num segurança e, desesperada por não saber como continuar, entrega sua identidade. A partir daí, ela é levada para uma espécie de gaiolinha improvisada com grades de segurança onde estão outras meninas, e lá ficarão durante quase todo o jogo (e quase todo o filme). Daí, à medida que somos apresentados às personagens masculinas e femininas envolvidas na situação e, conseqüentemente, às suas índoles e comportamentos, o filme abruptamente abandona nossa ex-protagonista e passa a seguir as ações e intrigas de outros personagens.
Mas esse abandono não significa também o abandono da intriga de thriller para chegar às arquibancadas ou, pelo menos, ter notícias do que acontece no jogo mesmo presas às grades. O que Fora de Jogo faz é criar uma outra linha de significação, paralela, que expõe a nu uma partilha de direitos e deveres diferenciados para homens e mulheres. Uma linha especulativa, nascida nas trocas de diálogo entre os jovens soldados e as jovens prisioneiras, que se acresce à tensa intriga original, de tentar assistir ao jogo ou, pelo menos, saber se o Irã está ganhando, de quem foi o gol e como o time está em campo. Mas o interessante, e é aí que o filme se destaca das ficções habituais de questionamento dos valores sociais ou mesmo dos filmes de tema político, é que a narrativa não precisa recorrer a nenhum personagem malvadinho para que se atravanque a vida de nossas pequenas heroínas. Jafar Panahi observa, ao contrário, como as intedições ao universo feminino não depende da má índole daqueles que as transformam em ato – os soldados são, na verdade, apenas bons rapazes que devem fazer a tarefa que lhes foi designada a fim de que não recebam sanções –, mas estão enraizadas numa cultura que se atualiza a cada tom de voz mais alto, a cada autorização para usar a força, a cada vez que automaticamente uma ação, um gesto, escondem sua própria arbitrariedade nas costas do "sempre foi assim". Nesse momento, Fora de Jogo cria ainda uma outra camada, um thriller ainda mais emocionante, nos olhos dos personagens jovens, seja quando eles fazem o que devem fazer, mesmo que saibam que existe aí uma auto-confessada injustiça, ou quando elas fazem aquilo que não deveriam fazer, mesmo que saibam que reside em seus gestos a centelha da justiça. No simples relutar acerca desse estado de coisas – um pensar antes do fazer automático, um voltar atrás da decisão, ou até a suspensão total da culpa –, existe um sub-reptício e profundo deslocamento da questão sobre a justiça da partilha entre o que cada sexo pode e não pode fazer.
Nos diálogos entre mulheres e homens, elas pedem motivos para não serem permitidas nos estádios. Aforas as mais costumeiras respostas pleonásticas – "porque só é permitido entrar homens" –, volta e meia aparece uma resposta, para ser em seguida questionada de volta pelas meninas. Num momento, um jovem fala: "Porque os homens se comportam mal, falam muito palavrão". Curiosa lógica, que ao invés de reprimir aqueles que se comportam mal, exclui aquelas que, a princípio, se comportariam bem (pois nada exclui que elas também queiram xingar). Mas ao mesmo tempo é uma lógica, por vias transersas, também protetora: é também por vergonha de expor as mulheres à má-educação dos homens que os soldados tentam justificar essa separação. Essa proteção pode se dar por delicadeza, mas, como se sabe, também pode ser uma maneira muito eficaz de esconder o preconceito. E aí Fora de Jogo novamente se destaca, ao equacionar ternura e violência sem fazer uso mesquinho de qualquer um dos dois ("no fundo ele usa a ternura para proibir", ou "ele proíbe porque no fundo ama"), apenas colocá-los ligados num mesmo lance, imbricados da mesma forma que o desejo desses jovens de ajudar as meninas porque sabem que elas têm direito, e a impossibilidade de ajudá-las porque isso significaria extensão do contrato.
As moças são transportadas antes do final do jogo, e o furgão deixa o estádio – com motorista, um soldado, as meninas e mais um menor portando fogos de artifício, também proibidos – a alguns minutos de acabar o jogo. A cidade está inteiramente mobilizada, pois afinal o Irã está prestes a faturar a classificação para a Copa. Gradativamente, o furgão vai sendo contaminado pelo espírito da classificação que se confirma, e o inesperado se produz. Momento de epifania, de beleza mística, em que uma intervenção quase mágica suspende a culpa de todos e, pelo menos uma vez, pouco importa se somos soldados ou presos, sujeitos ou assujeitados, homens ou mulheres. Desfeita a lógica da separação, desfazem-se os elos "justos" que a tradição impõe a despeito mesmo do bom senso daqueles que a fazem cumprir. Abre-se uma possibilidade, para um equilíbrio mais justo, mais igual, para um diálogo maior entre papel feminino e papel masculino. Uma hora ou outra, a comemoração terminará, voltarão todos às suas casas, e com os ânimos de volta ao normal, se restabelece a antiga ordem. mas no coração de alguns jovens, homens e mulheres, estará mantida a lembrança do dia em que as distinções se esfacelaram em nome de uma alegria maior. É na confirmação sem soluções fáceis desse estado de coisas que parece nunca mudar mas que teima em mudar aos poucos que Fora de Jogo emociona, e Jafar Panahi encontra o espaço de fazer seu cinema, que sabe ser mais político na chegada do que na partida, mais na forma do que no tema, mais na frontalidade do que na pompa da relevância. Impedidas de assistir ao futebol, nossas heroínas acabaram ganhando um jogo talvez bem mais importante. "

airtonshinto said...

BERNARDO KRIVOCHEIN, do site Zeta Filmes:
"Jafar Panahi faz um cinema literalmente de guerrilha em “Offside”, empunhando a câmera e promovendo a dramatização pelas ruas de Teerã durante as comemorações populares pelo ingresso da seleção de futebol do Irã na Copa do Mundo 2006, na Alemanha. As imagens trazem consigo o maior grau de eletricidade que se pode ver numa tela de cinema, estamos imersos na comoção, no caos, nas comemorações; somos também o ponto de referência da dura realidade que sucederá a gritaria: mesmo com a vitória do Irã, o “crime” não será perdoado e as protagonistas, um grupo de mulheres detidas ao tentarem entrar no (pitoresco) Estádio de Azadi (o acesso de mulheres a esses tipos de eventos é estritamente proibido por lei), ainda terão que lidar com as conseqüências de sua insubordinação no dia seguinte. Elas não serão perdoadas. Lei arbitrária autoritariamente imposta, acatada pelos soldados obrigados a cumpri-las e naturalmente questionada pelas vítimas que, flagrando as japonesas nas arquibancadas, não a vêem ser estendida para outros territórios. (“Quer dizer que a culpa é minha de ter nascido no Irã?” – está claro por que as mesmas autoridades impedem que os filmes de Panahi sejam exibidos em seu país de origem) Para elas, a vida no Irã estaria perfeitamente aceitável se não fosse sua paixão proibida por futebol, que as fazem invejar a liberdade de outros países.
E vejamos só o que fazemos com a liberdade que nos é garantida. Num episódio do programa de TV a cabo “Saia Justa” (nos moldes exatos do americano “The View”, que está indo pela culatra por causa dos escândalos entre as apresentadoras), cuja proposta é permitir um espaço para que as mulheres discutam abertamente e, por tabela, provem a sociedade ainda machista e patriarcal (não fosse ainda assim, o programa perderia toda sua razão de ser) que se encontram no mesmo patamar de conteúdo, respeito e consideração que seus opressores machos (senão tentar se mostrarem superiores), Maitê Proença, uma das integrantes, comentou o seguinte durante uma discussão sobre o tradicional boicote brasileiro ao sucesso de seus compatriotas (em paráfrase): O recalque do sucesso no Brasil é tão grande que me parece que tem mais gente torcendo contra o milésimo gol de Romário do que a favor, é uma coisa tão legal...” e mais outras declarações apaziguadoras, românticas, enfim. A questão aqui não está nada ligada ao, assim batizado, cultural recalque do sucesso e sim a uma lógica futebolística competidora de compreensão básica: a) Romário é jogador de um time; b) Existem mais torcedores de todos os outros times somados do que o do time do Romário; c) Ninguém torce contra o próprio time (logo, o cultural recalque do sucesso já se torna meio furado); d) Sofrer um gol é uma humilhação pública; e) Sofrer um milésimo gol – de quem quer que seja - seria uma suposta humilhação histórica (agora que já aconteceu, concordemos que foi um tiro n'água). Conclusão: torce-se contra o Romário porque ninguém quer que seu time perca, obviamente. E me ocorre que a maioria das mulheres do mundo livre aventuram-se a falar sobre coisas as quais não fazem a menor idéia apenas para confirmar aos olhos de terceiros de que são dignas da liberdade conquistada, sem nunca fazê-la valer para si mesmas, valorizá-la sem nunca realmente usufruí-la. Parecem não poder admitir que, no amplo cardápio de assuntos possíveis, certos tópicos simplesmente não lhes interessam pois temem não recuperar o direito de jamais discuti-los novamente. Ao falar merda sobre futebol, o velho estigma (que mulheres nada sabem sobre o assunto) é reforçado. É assim que se conquista o respeito?
Admito, o episódio me fez estender essa visão a todas as mulheres – a generalização crônica e precipitada que faço das coisas é uma falha grave de comportamento. Panahi foi um antídoto. As personagens permanecem sem nome porque Panahi também generaliza: elas são todas as mulheres. Disfarçadas, elas se viajam nos microônibus a caminho do estádio, esperando não serem descobertas. Sem querer, elas descobrem o misterioso mundo dos homens que o governo insiste em manter em segredo: entre si, os adultos são permitidos agir infantilmente, de forma estúpida: brigam, gritam, brincam, falam baixaria. O mundo dos homens torna-se vergonhoso na presença de uma mulher, não apenas porque ela certamente os julgaria e os impediria de livremente ser, mas também porque, na comparação, a mulher certamente se sairia superior. E um governo machista jamais permitiria isso.
Esquecem o poder do futebol. Não há tempo para julgar comportamentos se existe genuíno interesse no jogo, mas aí está a Revolução Islâmica: mulher não entra no estádio assim como menor não entra em boate. Assistir a forma como a personagem tenta furar a lei provoca, inclusive, a mesma tensão de ser descoberto. Chame de simpatia entre marginais, até porque ela não é bem sucedida, como o resto do grupo de invasoras detidas, mantidas dentro de um cercadinho numa passarela de acesso à arquibancada. Como os soldados obrigados a manter guarda em dia de jogo. Como o superior, um camponês obrigado a servir a pátria. Aqui, as mesas viram: uma das detidas confronta o guarda sobre a lei de impedimento, ela a conhece, ele não. Ela está no estádio por vontade, ele por obrigação. Ela está na detenção e ele na guarda ambos por falta de opção.
Nos bastidores do estádio, só podem ouvir os gritos da platéia sugerindo um excitante jogo que lhes é invisível, que mais parecem tortura chinesa para aquelas que tanto ansiavam por assisti-lo. Panahi reproduz o clima de censura em seu país (como deve ser ouvir falar bem de um filme sem poder ter acesso a ele?), mas vai mais além e cria um clima de eterno e profundo contracampo. Seja na narração improvisada de um dos guardas, no relato de uma prisioneira recém-capturada, os últimos minutos de jogo no rádio mal sintonizado do microônibus, a partida Irã X Bahrani é como um enorme McGuffin, descrito sempre através de um filtro humano. Em “Offside”, somos a platéia que assiste a platéia sendo afetada em cenas longas que esgotam todas as possibilidades de ação e diálogo. Existem dois momentos em que podemos de fato ver o jogo (e constatar as filmagens em tempo real de “Offside”): um quando há algo muito mais fundamental acontecendo e, o segundo, na transmissão de TV quando o microônibus estaciona brevemente. Nesse último, há um efeito de janela-dentro-de-janela que enfatiza o método de Panahi: nunca mostrar o evento sem a participação do povo que o circunda. A torcida celebra, mas é Panahi que, nos últimos frames, lhe garante o sentido, tornando-a luto, manifestação, protesto. "

airtonshinto said...

KLEBER MENDONÇA FILHO, do site Cinemascopio:
"Numa conversa recente com um distribuidor independente do sudeste, comentávamos o pouquíssimo público de Fora do Jogo (Offside, Irã/França, 2006) no seu lançamento, em São Paulo, há um mês. O filme de Jafar Panahi foi virtualmente ignorado pelo público paulistano, fato atribuído à "moda". "Filmes iranianos saíram de moda", disse o distribuidor sobre o seu concorrente. Por pertencerem a um circuito que não trabalha com o marketing gigante dos americanos, títulos independentes, oriundos de cinematografias externas como a iraniana, precisam, de fato, de uma moda, um "marketing" espontâneo. Isso surge na crítica e em festivais internacionais de cinema, fenômeno atualmente voltado para os romenos, recém premiados em Cannes, inclusive com a Palma de Ouro. Ou seja, hoje os romenos são quentes, os iranianos frios, e é a moda quem diz.
Obviamente que isso muitas vezes não quer dizer nada em relação ao filme em si (embora a tal onda/moda romena me impressione bastante). Se o público anda na moda, a crítica (muitas vezes burra) também entra no barco. No caso de Fora do Jogo, espera-se melhor sorte para ele fora de São Paulo, especialmente por tratar-se de um filme que tem como base temática o futebol, algo que, com raríssimas exceções, foi tratado adequadamente pelo cinema brasileiro. Ver um cineasta iraniano saindo-se tão bem ao relatar a alegria e a paixão do futebol num filme tão simples mais uma vez me faz pensar no porquê do esporte nacional ser tão mal filmado no Brasil. Último caso em questão: O Casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto.
Panahi, na verdade, passa longe de bolas e traves. O futebol está mais em alma do que em forma, pois ele enfoca um grupo de mulheres, garotas na sua maioria, que se disfarçam de homens para entrar clandestinamente num estádio de Teerã. O objetivo é ver uma das partidas eliminatórias da Copa de 2006.
No Irã, estádio de futebol não é lugar para mulher, cada uma delas pode ser a irmã, filha ou mãe de algum homem que não gostaria nem de imaginar o que ela ouviria no campo, cercada por milhares de elementos masculinos. São proibidas e arriscam prisão ao tentar entrar.
Barradas e presas no lado de fora do estádio, elas tentarão argumentar uma idéia desesperada e frustrada de liberdade, o som inconfundível do futebol em estádio tomando boa parte do que ouvimos da trilha sonora, fazendo do futebol entidade viva e potente. O drama freqüentemente engraçado das meninas ganha contornos cada vez mais humanos, especialmente ao vermos que muitos garotos jovens com camisetas pop, e que por ali passam a caminho das arquibancadas, pedem a liberação delas, talvez uma pista para um Irã que talvez preferisse mudar.
Num embate constante com soldados jovens designados para levá-las à punição (e numa cena engraçada, a um banheiro masculino de estádio para uma emergência biológica), as meninas, formadas por claras mariazinhas e óbvios joãozinhos, põem para for a suas vontades, frustrações e desobedências civis. Panahi, cineasta claramente dotado de fino senso de anarquia e coração grande, conclui o todo com a embriaguez tão específica do futebol, capaz de promover uma das raras fendas sociais e humanas onde todos se tornam iguais. Um prazer. "

airtonshinto said...

CELSO SABADIN, do site Cineclick:
"Mais uma vez, o cinema iraniano conquista corações e mentes pela sua simplicidade. E, neste caso, encanta também por abordar um dos temas mais apreciados pelos brasileiros: o futebol. Em Fora do Jogo, o premiado cineasta Jafar Panahi (o mesmo de O Círculo e O Balão Branco) narra com o despojamento de sempre a história de uma garota que tem o sonho de ver, no estádio, o jogo entre Irã e Barein pelas eliminatórias da Copa do Mundo da Alemanha. O que, a princípio, não seria nenhuma epopéia, não fosse por um importante "detalhe": no Irã, as mulheres são proibidas de freqüentar os campos de futebol. A garota então se veste como um menino e tenta furar a vigilância. Não consegue, é presa, e passa pela "tortura" de ouvir a torcida sem poder ver o jogo.
O filme critica os preconceitos iranianos contra a sociedade feminina de forma clara e direta, tendo sido, por isso mesmo, proibido no seu país de origem. Mas, antes de ser um libelo político, é uma ode de amor à liberdade e à igualdade que poucas coisas além do esporte podem proporcionar.
Rodado em tom semidocumental no próprio estádio de Teerã, Fora do Jogo ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim, empatado com Além do Desejo."

airtonshinto said...

LEONARDO LUIZ FERREIRA, do site Almanaque Virtual:
"O profissional do cinema, independente da função que exerça, sabe que se pode aprender bastante em um set de filmagem. Deve-se permanecer sempre com a cabeça aberta e um sentido aguçado de percepção. O momento de filmagem é o instante ideal para sair da teoria, que é necessária, e partir à prática. O cineasta iraniano Jafar Panahi, um dos mais premiados entre os jovens realizadores, começou a carreira como discípulo de Abbas Kiarostami, da obra-prima “Close Up” (1990), ao fazer assistência de direção para o lírico “Através das Oliveiras” (1994). Mas a parceria não se encerrou nesse trabalho; Abbas escreveu o argumento, o que depois iria se repetir em “Ouro Carmim” (2003), da estréia de Panahi com “O Balão Branco” (1995), vencedor da Câmera D´or de Cannes. Essa união e inspiração estão presentes na obra de Jafar, que aos poucos saiu da sombra de Kiarostami e se transformou em um realizador sólido. Fora do Jogo (Offside, 2006), vencedor do prêmio do júri no festival de Berlim, é mais um passo à frente em uma filmografia consistente e que merece atenção.
O cinema de Panahi é o da busca, o que leva a comparação direta com o trabalho de Kiarostami. E ela é diferente ao analisar as obras no sentido do objetivo final, mas não do sentimento que impulsiona: em “O Balão Branco” uma menina quer comprar um peixe dourado para as comemorações de fim de ano; “O Espelho” (1997) retrata o retorno de uma garota ao lar após a saída da escola, já que sua mãe não foi apanhá-la. Fora do Jogo se inicia com a procura de um pai pela filha, que fugiu de casa para assistir a um jogo de futebol. Mas essa não será a única jornada da narrativa: uma moça quer entrar no estádio; outra busca afirmação dos valores femininos; mas, sobretudo, a busca essencial é por um Irã diferente de sua estruturação social austera e arcaica. Desde “O Círculo” (2000), Jafar não se fixa em um personagem, porém em vários para tecer a feitura de um painel crítico da situação de seu país. Essa postura fez com que seus três últimos trabalhos, já incluído Fora do Jogo, fossem banidos dos países islâmicos. Diferente de outros panfletos cinematográficos, a sua voz e olhar merecem ser notados e a premiação constante de seus filmes faz com que eles atinjam um público mais amplo.
A secura no registro, com câmera na mão, que demarcou “O Círculo” e “Ouro Carmim” cedeu lugar para a possibilidade da comicidade com diálogos repletos de ironia em que as mulheres questionam a sua condição, que é repleta de absurdos em que até os próprios homens ficam confusos a respeito dessa não liberdade. Ao encarcerar entre barras as moças que queriam assistir ao jogo no estádio, o diretor revela o estado de aprisionamento em que vivem e a acidez de uma imagem iconoclasta de uma mulher vestida de militar ajuda a refletir sobre isso. No princípio da narrativa apenas existe um excesso de exposição da mensagem da sociedade machista quando os homens exploram uma jovem que quer entrar no estádio.
O elemento mais interessante em Fora do Jogo é seu conceito que se aproxima do documentário. As filmagens acontecem realmente durante a partida entre a seleção de futebol do Irã e do Bahrein, que decidiu a vaga para a Copa do Mundo 2006 realizada na Alemanha. Forma-se então um exercício temporal que fascina pela proposta arriscada, que poderia mudar os rumos da narrativa em função do resultado da partida. Até porque o intuito é capturar o povo iraniano em polvorosa, além de flagrar uma união possível entre todos, independente de cor, credo, sexo e religião. E nada melhor que o futebol seja catalisador desse sentimento. “Deixe-me ficar, por favor, nas arquibancadas, pois no meio da multidão ninguém vai me reconhecer”, afirma uma jovem a um militar. Em uma frase traduz-se esse estado de invisibilidade da mulher no Irã. E em uma imagem, como a do fogo de artifício que ilumina as ruas e a festa pela vitória, mostra-se que a mudança é possível e está ao alcance das mãos e dos olhos."

airtonshinto said...

PAULA FERRAZ, do site Almanaque Virtual:
"Fora do Jogo (Offside, 2006), do diretor iraniano Jafar Panahi, narra a história de um grupo de garotas que fazem de tudo para entrar no Azadi Stadium, em Teerã, para assistir a partida de futebol que classificaria o Irã para a Copa de 2006, realizada na Alemanha. Como a política da República Islâmica proíbe que as mulheres se misturem aos homens, em eventos como esses, jovens se vestem de meninos para tentar enganar os guardas.
O filme é de uma simplicidade narrativa bastante característica dos longas iranianos, porém, diferente dos experimentais, mais conhecidos por seus longos planos, e estrutura documental, como as obras do aclamado Abbas Kiarostami. Fora do Jogo é um filme de gênero, com o tom da comédia presente durante todo o tempo, mesmo se tratando de uma situação com um fundo social.
É encantadora a forma como Fora do Jogo narra a vontade das mulheres de estar presente no evento, a paixão que elas têm por seu país, que tem como solução de preservá-las e excluí-las. Em nenhum momento, a obra julga alguma atitude, ou a política do Irã, apenas mostra fatos e situações decorrentes de uma cultura tão diferente da nossa. Panahi consegue colocar o espectador dentro do estádio, o som da multidão que aguarda pelo gol da vitória, faz com que fiquemos curiosos junto com as garotas. Quem está jogando? Quem vai chutar a falta? Como está sendo a partida?
As atuações das jovens garotas é, sem dúvida, um dos grandes méritos do filme. Elas se apresentam de uma forma encantadora que faz com que haja uma simpatia grande em relação ao público, e aos outros personagens. É o jeitinho feminino que conquista até os guardas que estão cuidando para mantê-las fora do jogo. Uma outra forma de continuar o olhar da mulher iraniana que o diretor já havia começado a fazer em seu filme anterior "O Círculo" (2000), e que outros diretores já haviam feito como em "The Day I Became a Woman" (2000), de Marzieh Meshkini, e "Às Cinco da Tarde" (2003), de Samira Makhmalbaf.
Fora do Jogo é mais um exemplo da força do cinema iraniano, e da diversidade cultural do nosso mundo. Um filme acima de tudo humano, que mesmo se tratando de um lugar e situação tão especifica consegue se tornar universal através da vontade de conquistar um sonho. Que seja esse sonho um lugar entre os homens em uma partida de futebol, o que inclusive, nos aproxima das mulheres do filme. O importante é tentar alcançá-lo e depois poder comemorar, como fazemos nós brasileiros em uma final de Copa, ou um iraniano ao ser classificado. "