Saturday, February 02, 2008

OPINIÃO DO CRÍTICO: ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ (II)

PABLO VILLAÇA, do site Cinema em Cena:

"Quando escrevi sobre este filme, em novembro do ano passado, comentei que a maior parte do público sairia do cinema com um grande sentimento de frustração em função do desfecho apresentado pelo escritor Cormac McCarthy em seu livro e preservado fielmente pelos irmãos Coen em sua fabulosa adaptação de Onde os Fracos Não Têm Vez. Pois mantenho a previsão, embora lamente fazê-lo, já que, embora os cineastas neguem ao espectador uma conclusão amarradinha e dramaticamente catártica, o fato é que esta é tematicamente perfeita e enriquece o filme ainda mais, transformando-o no melhor trabalho de uma dupla que, em 23 anos de carreira e apenas 12 longas, já criou maravilhas como Gosto de Sangue, Arizona Nunca Mais, Ajuste Final, Barton Fink, Na Roda da Fortuna, Fargo e O Homem que Não Estava Lá.

Ambientado no Texas, em 1980, o roteiro acompanha o veterano do Vietnã Llewelyn Moss (Brolin), que, certa noite, encontra uma maleta com 2 milhões de dólares depois de se deparar com um massacre ocorrido no meio do deserto. Decidido a ficar com o dinheiro, ele passa a ser perseguido por bandidos mexicanos e – ainda pior – por um matador particularmente cruel que atende pelo estranho nome de Anton Chigurh (Bardem). Enquanto isso, o xerife Ed Tom Bell (Jones) tenta encontrar Llwelyn antes que este seja morto por Chigurh e, neste processo, se mostra cada vez mais impressionado com a matança promovida pelo sujeito.

Como na maioria dos projetos dos Coen, a trama de Onde os Fracos Não Têm Vez tem relativamente pouca importância quando comparada ao prazer que os cineastas sentem em desenvolver seus personagens – e, neste sentido, os diálogos criados por McCarthy em seu livro e transferidos para o roteiro com imenso respeito pelos irmãos são incrivelmente similares àqueles que os próprios diretores costumam criar em seus trabalhos originais (o que talvez explique por que decidiram, pela primeira vez, adaptar a obra de outra pessoa). Enriquecido pela cadência do sotaque texano, os diálogos ditos por figuras com nomes como Carla Jean e Ed Tom (que, por si só, já dizem muito sobre seus donos) são escritos com um cuidado que não faz distinção entre protagonistas e quase figurantes: quando Llewelyn pergunta o preço de um quarto para uma velha recepcionista de hotel, por exemplo, ela oferece uma resposta que diverte pela construção: “Cada um tem um preço aplicável” – e, mais tarde, quando alguém indaga o que o personagem de Brolin fez com o dinheiro, este responde com uma das melhores tiradas já filmadas pelos Coen: “Gastei 1,5 milhão em prostitutas e uísque. O resto, eu desperdicei”.

Com isso, Onde os Fracos Não Têm Vez apresenta-se como um destes raros exemplares da Hollywood moderna que são mais do que um espetáculo visual: eu poderia apenas escutar o filme centenas de vezes com o mais absoluto prazer. Considerem, por exemplo, a arquitetura quase poética de uma troca de diálogos entre Chigurh e Carson Wells, vivido por Woody Harrelson, em uma das melhores cenas do longa, quando, depois de ouvir Chigurh filosofar ironicamente sobre sua trajetória até ali, Carson comenta:

- Você tem idéia do quanto é louco?

- Você se refere à natureza desta conversa?

- Eu me refiro à natureza de sua pessoa.

E se você teme que eu tenha revelado diálogos demais do longa, pode acalmar-se: eu poderia empregar páginas e mais páginas apenas para comentar falas específicas do filme, tamanha a quantidade de trocas memoráveis como estas ali presentes. Porém, esta obra-prima (e usei esta expressão apenas duas vezes ao comentar cerca de 60 filmes da Mostra de São Paulo: a outra foi com relação a 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias) impressiona também por sua riqueza narrativa: mistura de western e filme noir, este talvez seja um dos trabalhos mais disciplinados dos Coen, que substituem seus costumeiros invencionismos visuais por uma lógica firme, apresentando aquele mundo como uma versão contemporânea (ou quase) de um “Velho Oeste” com códigos morais ainda mais degradados pelo tempo.

Neste sentido, o personagem de Bardem surge não apenas como um vilão assustador, mas como um símbolo do mundo-cão em que vivemos – e não seria errado considerá-lo como uma metáfora do verdadeiro Mal que nos surpreende em tragédias como a do garotinho arrastado e morto por assaltantes de carro, em São Paulo; a do casal de jovens barbaramente executado no litoral do Rio; ou a dos pais que tiveram sua morte planejada pela própria filha, há alguns anos. Numa Sociedade que chega ao ponto de encarar um psicopata como o Capitão Nascimento como herói, há muito que o sentimento de segurança deixou de existir: sabemos que, de um momento para o outro, um moleque armado com uma automática ou um playboy desesperado por crack podem pôr fim à vida de seus parentes ou de completos estranhos – e, neste aspecto, é impossível deixar de reconhecer o brilhantismo simbólico da cena em que Chigurh obriga um humilde atendente de posto de gasolina (o desconhecido Gene Jones, numa participação digna de prêmios) a disputar um tenso Cara ou Coroa que, ambos sabem, pode significar o fim da vida do sujeito.

Javier Bardem, aliás, oferece um desempenho nada menos do que perfeito como o apavorante Chigurh: utilizando um corte de cabelo que torna o personagem ainda mais inquietante, ele cria um monstro cuja natureza metafórica já é ressaltada por sua primeira cena, quando os Coen o apresentam com o rosto oculto, nas sombras, enquanto a narração de Tommy Lee Jones discute a crueldade incompreensível de certos indivíduos. Assim, quando finalmente podemos ver a face do vilão, ele surge já em ação e exibindo um olhar absolutamente insano, quase em transe, enquanto faz mais uma vítima. Porém, ator sempre inteligente, Bardem foge do histrionismo ao empregar uma voz sempre calma e controlada mesmo nas cenas em que Chigurh se mostra claramente irritado – e isto, aliás, reflete a natureza metódica do personagem, que, antes de agir, chega a preparar-se cuidadosamente ao ensaiar o tempo que levará para abrir uma porta e acender a luz ou ao estudar possíveis esconderijos que seus oponentes poderão utilizar num quarto de hotel. Enxergando suas vítimas como animais (não é à toa que ele emprega uma arma utilizada para abater gado), o matador ganha contornos quase míticos ao longo da projeção – e, em determinado instante, os Coen criam um quadro que coloca o espectador estrategicamente ao lado de um dos alvos de Chigurh, como se também estivéssemos sob sua mira, vulneráveis.

E se Bardem é, aqui, o Mal Encarnado, Tommy Lee Jones surge soberbo como a Voz da Razão, encarnando a frustração que todos sentimos diante da brutalidade crescente que faz do planeta um lugar que justifica tragicamente o título do filme (e pior: “fracos” são todos aqueles que recusam a desumanização, que mantêm seus princípios). Tentando enxergar o mundo de maneira filosoficamente pessimista, o xerife Ed Tom Bell sabe que jamais conseguirá acompanhar o ritmo com que a Sociedade vem se decompondo e, assim, seu cansaço torna-se cada vez mais crescente à medida que percebe estar no meio de uma batalha já perdida. E se os fracos são aqueles que buscam manter a própria integridade, como mencionei há pouco, o Llewelyn do ótimo Josh Brolin é a representação perfeita disso, já que é um gesto de humanidade (que ele reconhecer ser também algo estúpido de se fazer) que praticamente o condena a ser perseguido por Chigurh.

Filmado pelo brilhante Roger Deakins com uma paleta que realça a secura daquele (e do nosso) mundo, Onde os Fracos Não Têm Vez conta ainda com um design de som absolutamente primoroso: negando-se a empregar uma trilha sonora convencional, o filme extrai tensão dos sons diegéticos (aqueles originados em seu próprio universo), como o ranger do assoalho, o raspar metálico de uma maleta de couro num duto de aço ou o eco de um telefone que toca à distância enquanto, à nossa frente, o autor do telefonema ouve o sinal da chamada jamais atendida. Da mesma maneira, a montagem precisa de Roderick Jaynes (leia-se: Joel e Ethan Coen) constrói seqüências de ação angustiantes, como aquela que começa quando presa e caçador parecem se avaliar silenciosa e cegamente através da porta de um quarto de hotel – e mesmo a inclusão de um plano-detalhe de uma embalagem se abrindo lentamente num balcão pode ressaltar o tom ameaçador de uma cena. Além disso, os cineastas, como de hábito, extraem humor de momentos atípicos como a perseguição no rio envolvendo um cachorro (e Brolin, pela segunda vez em 2007, não poupa o animal) ou o protesto da sogra de Llewelyn quando este afirma que tudo ficará bem: “Ficará bem? Eu tenho o câncer!”.

Pessimista como o próprio xerife Ed Tom Bell, Onde os Fracos Não Têm Vez expõe com tristeza o terror crescente de nosso cotidiano, que pode trazer a dor num cruzamento claramente sinalizado, no virar de uma esquina (reparem como os tiros, na seqüência do tiroteio noturno, parecem vir do nada, da escuridão, inesperados e fatais) ou num arremesso de moeda. E se por um breve instante sonharmos com um futuro de segurança, com uma luz reconfortante e quente na noite escura e fria, esta esperança se mostrará frágil a ponto de ser destruída por três curtas palavras:

“E aí acordei”.

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