Thursday, January 31, 2008

OPINIÃO DO CRÍTICO: ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ

MARCELO HESSEL, do site Omelete:

"Saiu do clássico O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford, a frase que define o Velho Oeste: "Entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda". Não importa se o personagem de James Stewart matou ou não matou Liberty Valance de verdade - enquanto houver alguém para contar a história, o mito do tiro certeiro viverá. Da mesma forma, quando um pistoleiro entra num saloon, é a imagem que fazem dele, e não sua eventual rapidez no gatilho, que vale mais.

Llewelyn Moss (Josh Brolin, foto à esquerda) tem contra si um Liberty Valance em Onde os Fracos não Têm Vez (No Country for Old Men): Anton Chigurh, o matador interpretado pelo espanhol Javier Bardem no faroeste que devolve a dignidade ao cinema dos irmãos Joel e Ethan Coen. Os tempos são outros, a fronteira empoeirada com o México mudou, mas as lendas permanecem. Ao mesmo tempo em que desconstrói o herói do western, Onde os Fracos não Têm Vez constrói em Anton Chigurh um mito.

O filme abre com a prisão do matador. Entre seus pertences, um cilindro de ar comprimido, que não demora para entendermos como funciona, e para quê. Paralelamente, acompanhamos Llewelyn no descampado texano, caçando cervos. O fato de Llewelyn errar o tiro e não conseguir abater o animal ao mesmo tempo em que Chigurh vara o cérebro de sua vítima sem deixar provas é o primeiro dado que o filme nos dá para evidenciar o abismo que separa os dois personagens. Temos o assassino perfeito versus o errante sujeito sem dons, e o suspense começa quando o primeiro passa a perseguir o segundo.

Há um MacGuffin aí no meio, uma mala com 2 milhões de dólares, mas, como todo MacGuffin, ela vale tudo para os personagens e não significa absolutamente nada para o espectador. O que vale para nós é o embate de Chigurh com Llewelyn, o homem-mito contra o homem-real.

O xerife interpretado por Tommy Lee Jones entra aí como mediador. A ele cabe não apenas hiperbolizar a lenda de Chigurh como manter no chão o mundano Llewelyn. A questão da oralidade é fundamental na construção das lendas de faroeste, e Onde os Fracos não Têm Vez respeita essa lógica - no mais, a oralidade, frequentemente expressa na figura de um narrador, é ponto importante na filmografia dos Coen. Nas cenas na delegacia e no café, o xerife e seu subalterno trocam histórias tão sangrentas e bizarras quanto essa que estamos acompanhando na tela - o que é uma forma de mitificá-la ainda mais.

Que o clímax do filme nos seja apresentado em uma elipse anti-climática (o desfecho do embate visto pelos olhos do xerife) é o ponto máximo da construção da lenda. Para a posteridade ficará somente a versão das testemunhas, como em O Homem que Matou o Facínora.

No mais, há por trás do jogo de versões e perspectivas todo um contexto de época. O filme é uma adaptação do romance homônimo de 2005 do norte-americano Cormac McCarthy, que ambienta a história no Texas de 1980. Não é, vale repetir, o mesmo Velho Oeste dos colonizadores. James Stewart representava em 1962 a vitória do civilizador sobre o selvagem - o tema da superação do homem sobre o ambiente, enfim, que percorre todo o faroeste em seu período clássico. Já Onde os Fracos não Têm Vez é a desconstrução niilista do herói mítico porque hoje a civilização perdeu, os heróis perderam, o ambiente venceu.

Boa sorte a Llewelyn Moss contra o seu Liberty Valance."

Notas do editor sobre a Opinião do Crítico:

1) O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), de John Ford, é um faroeste que se inicia com a visita do senador Ranson Stoddard (James Stewart), a Shinbone, no Velho Oeste, para o funeral de Tom Doniphon (John Wayne), um vaqueiro do qual era muito amigo. Entrevistado por um repórter, Stoddard conta a história (em flashback) de como sua fama de justiceiro se iniciou, anos atrás. Em flashback, acompanhamos a chegada do então advogado recém-formado Stoddard a uma pequena cidade do “Velho Oeste”. Sua carruagem é assaltada e ele é espancado. Stoddard jura então colocar seu algoz, o líder dos ladrões, Liberty Valance, (Lee Marvin), atrás das grades, atitude impensável na “terra sem lei”. Sua cruzada pela justiça o leva até a pequena cidade de Shinbone, onde conhece o cowboy "ao estilo clássico" Tom Doniphon (JohnWayne) e a garçonete Hallie (Vera Miles), por quem se interessa. No duelo final entre Stoddard e Valance, na verdade quem acerta o tiro que mata o bandido é Doniphon, escondido atrás de uma casa. O tiro dado pelo advogado, que não tinha nenhuma prática neste assunto, errou o alvo. Mas foi ele quem levou toda a fama e se elegeu senador. Doniphon, por sua vez, caiu na obscuridade e perdeu para Stoddard o coração de Hallie, por quem também era apaixonado. Ao saber que a carreira política de Stoddard começou com uma farsa, o repórter menciona a célebre frase “when the legend becomes fact, print the legend”.

2) MacGuffin é um termo popularizado por Alfred Hitchcock que serve para denominar de um modo geral objetos ou situações criadas no enredo de um filme para prender a atenção do espectador e motivar a situação principal, mas que na realidade são irrelevantes para o conjunto da história. O MacGuffin em geral é de suma importância para os personagens, os colocam no centro da trama principal e depois passam para um plano secundário até perder completamente a importância para o espectador.
Maletas cheias de dinheiro são MacGuffins bastante utilizados. Elas são cobiçadas e disputadas mas normalmente o que interessa ao diretor é transportar as personagens para o cenário da trama principal, como aconteceu em Psicose, por exemplo.

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