Friday, March 23, 2007

Estréias de 11 de maio de 2007

BAIXIO DAS BESTAS
(Brasil, 2006)
Direção: Cláudio Assis
Elenco
: Mariah Teixeira (Auxiliadora), Fernando Teixeira (Seu Heitor), Caio Blat (Cícero), Matheus Nachtergaele (Everardo), Dira Paes (Bela), Marcélia Cartaxo (Ceiça), Hermila Guedes (Dora), Conceição Camarotti (Dona Margarida), João Ferreira (Mestre Mário), Irandhir Santos (Maninho), China (Cilinho), Samuel Vieira (Esdras)
Sinopse: Zona da Mata de Pernambuco. Em uma pequena cidade em torno dos canaviais e das usinas o tempo engolia tudo.
Heitor levava sua neta, Auxiliadora, menor de idade, para exibi-la nua em troca de dinheiro num posto de gasolina cheio de caminhoneiros e trabalhadores dos canaviais.
Apesar de expôr sua neta dessa maneira, Heitor era um velho cheio de moralismo em seu discurso, sempre reclamando da decadência dos costumes, da falta de respeito e da safadeza que imperam nos "tempos modernos".
Heitor guardava um vidro cheio de artrópodes (insetos, aracnídeos e lagartos) que orgulhava-se de mostrar para Mestre Mário, o artesão das festas de Samba e de Maracatu.
Auxiliadora, a neta de Heitor, trabalhava para o avô o dia todo, limpando a casa, cozinhando, passando e lavando roupa na beira do riacho. Heitor não deixava a menina sossegada, estava sempre de olho e desconfiava que ela estava "dando muita trela" pra Maninho, o rapaz que estava cavando uma fossa perto da casa dele.
Cícero era um estudante universitário da capital que voltava para o interior nos finais de semana para farrear com seu amigo, o inconsequente Everaldo, nos prostíbulos, nos riachos e no cinema abandonado. Circulando pela cidadezinha com o carro emprestado da mãe, o jovem vê a exibição de Auxiliadora no posto de gasolina e planeja violentá-la.
Só restaria o tempo pra engolir tudo.



Site Oficial: http://www.baixiodasbestas.com.br/



O AMOR PODE DAR CERTO
(Griffin & Phoenix, EUA, 2006)
Direção: Ed Stone
Elenco: Amanda Peet (Sarah Phoenix), Dermot Mulroney (Henry Griffin), Sarah Paulson (Peri), Blair Brown (Eve), Alison Elliott (Terry), Lois Smith (Dr. Imberman), Jonah Meyerson (Kirk), Max Morris (Andrew), Adam Kulbersh (Stu Knoepflemacher), Simon Jones (Professor).
Sinopse: Quando Henry Griffin (Dermot Mulroney) descobre que está com câncer terminal, ele decide viver sua vida ao máximo. Ao assistir uma aula de psicologia na Universidade de Nova York ele conhece Sarah Phoenix (Amanda Peet), com quem logo se envolve. Porém Phoenix também está morrendo, o que faz com que ambos percebam que o relacionamento que possuem é a última chance que têm para descobrir o amor.
Notas da Crítica:
Renato Marafon, Cinepop: 3,5/5Alysson Oliveira, Cineweb: 2/5
Marcelo Hessel, Omelete: 2/5
Airton Shinto, Shintocine: 1/10
LADY VINGANÇA
(Chinjeolhan Geumjasshi, Coréia do Sul, 2005)
Ação - 112 min.
Direção: Park Chan-Wook
Elenco: Choi Min-Sik (Sr. Baek), Go Su-Hee (Ma-Nyeo), Kim Bu-Seon (Woo So-Young), Kim Byeong-Ok (Pastor), Kim Shi-Hoo (Geun-Shik), Lee Seung-Shin (Park Yi-Jeong), Lee Yeong-Ae (Lee Geum-Ja), Nam Il-Woo (Detetive Choi), Oh Dal-Su (Sr. Chang), Ra Mi-Ran (Oh Su-Ree).
Sinopse: Aos 19 anos Lee Geum-Ja (Lee Yeong-Ae) é condenada a 13 anos de prisão pelo seqüestro e assassinato de um menino de 6 anos. Ela está acobertando o verdadeiro culpado, seu namorado e professor Sr. Baek (Choi Min-Sik). Quando descobre que está sendo traída, Geum-Ja passa todo o seu tempo na cadeia preparando uma vingança para o ex-amante. Treze anos depois ela sai da cadeia e, com a ajuda de algumas ex-colegas da prisão, encontra Sr. Baek e põe em prática seu minucioso plano.
Notas da Crítica:

Pablo Villaça, Cinema em Cena: 10/10
Celso Sabadin, Cineclick: 9/10
Arianne Brogini, SET: 8/10
Fabio Yamaji, Cinequanon: 4/5
Luiz Carlos Merten, O Estado de São Paulo: 8/10
Neusa Barbosa, Cineweb: 4/5
Rodrigo Carreiro, Cine Reporter: 4/5
Alex Xavier, Guia do Estadão: 7,5/10
Christian Petermann, Guia da Folha: 3/4
Lucas Murari, Cineplayers: 7,5/10
Naief Haddad, Guia da Folha: 3/4
Sandro Macedo, Guia da Folha: 7,5/10
Sérgio Dávila, Guia da Folha: 3/4
Sérgio Rizzo, Guia da Folha: 3/4
André Gordirro, SET: 7/10
Franthiesco Ballerini, Jornal da Tarde: 7/10
Jbeto, Cine do Beto: 3/5
Régis Trigo, Cineplayers: 6/10
Sergi Sanchez, Contrapicado: 3/5
Sergio Nunes, Cinequanon: 3/5
Inácio Araujo, Guia da Folha: 2/4
Suzana Amaral, Guia da Folha: 2/4
Erico Fuks, Cinequanon: 2/5
Gabriel Carneiro, Os Intocáveis: 2,5/10
Gilberto Silva Jr., Contracampo: 1/4
Ruy Gardnier, Contracampo: 1/4
Gerard Casau, Contrapicado: 1/5
Daniel Ureña, Contrapicado: 0/5
Enrique Aguilar, Contrapicado: 0/5
Luiz Carlos Oliveira Jr., Contracampo: 0/4
Magdalena Navarro, Contrapicado: 0/5
Marina Person, Guia da Folha: 0/4
Tobey, The Bridge: 0/5

ÍNDICE NC: 5,25 (33)
HÉRCULES 56
(Brasil, 2007)
Direção: Sílvio Da-Rin
Elenco: Agonaldo Pacheco, Flávio Tavares, José Dirceu de Oliveira, José Ibrahin, Maria Augusta Carneiro Ribeiro, Mário Zanconato, Ricardo Vilas Boas, Ricardo Zarattini, Vladimir Palmeira, Cláudio Torres, Franklin Martins, Daniel Aarão Reis, Manoel Cyrillo, Paulo de Tarso Venceslau.
Sinopse: Na semana da independência de 1969 o embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, foi sequestrado. Em sua troca foi exigida a divulgação de um manifesto revolucionário e a libertação de 15 presos políticos, que representam diversas tendências políticas que se opunham à ditadura militar. Banidos do território nacional e com a nacionalidade cassada, eles são levados ao México no avião da FAB Hércules 56. Através de entrevistas com os sobreviventes os fatos desta época são relembrados.
Notas da Crítica:

Cesar Zamberlan, Cinequanon: 4/5
Marcelo Miranda, Cinequanon: 4/5
Neusa Barbosa, Cineweb: 4/5
Ana Paul, Multiply: 3,5/4
Emilio Franco Jr., Cineplayers: 7,5/10
Maurício Puls, Folha Ilustrada: 3/4
Alessandro Giannini, SET: 6,5/10
Angela Andrade, Cinequanon: 3/5
Leonardo Mecchi, Cinequanon: 3/5
Marcia Schmidt, Cinequanon: 3/5
Tobey, The Bridge: 3/5

Cássio Starling Carlos, Folha Ilustrada: 2/4
Leonardo Mecchi, Cinequanon: 2/4
Gabriel Carneiro, Os Intocáveis: 5/10
Gilberto Silva Jr., Contracampo: 2/4
Rodrigo de Oliveira, Contracampo: 2/4
Ruy Gardnier, Contracampo: 2/4
Anahi Borges, Cinequanon: 2/5
Fabio Yamaji, Cinequanon: 2/5
Sérgio Alpendre, blospot chip hazard: 2/5

ÍNDICE NC: 5,95/20
UM CRIME DE MESTRE
(Fracture, EUA, 2007)
Suspense
Direção: Gregory Hoblit
Elenco: Anthony Hopkins (Ted Crawford), Ryan Gosling (Willy Beachum), David Strathairn (Joe Lobruto), Billy Burke (Rob Nunally), Rosamund Pike (Nikki Gardner), Xander Berkeley (Juiz Moran), Petrea Burchard (Dr. Marion Kang), Larry Sullivan (Lee Gardner), Kate Clarke (Sra. Lee Gardner), Josh Stamberg (Norman), Yorgo Constantine (P.D. Constantine), Cliff Curtis (Detetive Flores), Embeth Davidtz (Jennifer Crawford), Valerie Dillman (Peg Gardner), Julia Frisoli (Sra. Wooten), Monica Garcia (Tina), Bob Gunton (Juiz Frank Gardner), Zoe Kazan (Mona), Gonzalo Menendez (Oficial Brooks), Fiona Shaw (Juíza Robinson), Reed Armstrong (Marido de Peg).
Sinopse: Após descobrir que sua esposa Jennifer o estava traindo, Teodore "Ted" Crawford, um alto executivo do ramo de aviação civil, a baleou com um tiro na cabeça.
Processado por tentativa de homicídio, Ted foi aos tribunais para se defender.
Willy Beachum é o jovem e ambicioso promotor público responsável pelo caso. Williy está prestes a deixar a promotoria pública para assumir um cargo na famosa agência privada Wooton Sims.
O caso Crawford parecia um simples, já que era um crime premeditado e com uma confissão clara de Ted, mas as coisas se complicam quando as circunstâncias em que a confissão foi feita são reveladas no tribunal: o investigador Robert "Rob" Nunally, o principal policial responsável pelas investigações e pela coleta de evidências e depoimentos, era o amante da esposa de Ted.
Com isso, a confissão de Ted é anulada, e o trabalho de Willy torna-se mais difícil, com a necessidade de provar a culpa do réu, que passa a requerer sua absolvição. Enquanto isso, Jennifer, a vítima, mantém-se em estado de coma com uma bala encravada no cérebro.
Notas da Crítica:

Ricardo Matsumoto, SET: 8,5/10
A. Pascoalinho, Premiere: 4/5
Daniel Oliveira, Pílula Pop: 80/100
Marcelo Forlani, Omelete: 8/10
Ma. Carmo Piçara, Premiere: 4/5
Renato Marafon, Cinepop: 4/5
Thiago Siqueira, Cinema com Rapadura: 8/10
Celso Sabadin, Cineclick: 7,5/10
Rodrigo Rosp, Cineplayers: 7,5/10
Suzana Uchôa Itiberê, SET: 7,5/10
Luiz Carlos Merten, O Estado de São Paulo: 7/10
Paulo Roberto Selbach Junior, Baú de Filmes: 7/10
Pablo Villaça, Cinema em Cena: 6/10
Alexandre Koball, Cineplayers: 6/10
Rui Brazuna, Premiere: 3/5
Tatiane Crescêncio, Cineplayers: 6/10
Tony Tramell, Almanaque Virtual: 3/5
Christian Petermann, Isto É Gente: 5,5/10

Edgar Olímpio de Souza, Boca a Boca: 2/5
Jbeto, Cine do beto: 2/5
Rui Pedro Tendinha, Premiere: 2/5
Sérgio Alpendre, Revista Paisà: 2/5
Francisco Ferreira, Premire: 1/5
Tobey, The Bridge: 1/5

ÍNDICE NC: 6,18 (24)
CONVERSANDO COM DEUS
(Conversations With God, EUA, 2006)
Direção: Stephen Simon
Elenco:
Henry Czerny
Sinopse: Adaptação do livro homônimo escrito por Neale Donald Walsch, que conta sua própria história que inspirou e transformou a vida de milhões de pessoas. Neale sofreu um grave acidente de carro no qual quebrou o pescoço. Sem emprego, mais tarde o vemos como um mendigo sem teto, pedindo comida e lutando para se manter vivo. Neale vai se sentindo cada vez pior e facassado, o que faz crescer sua raiva e amargura. A existência ou não de Deus é sua maior questão. E ele encontra as respostas ao longo de muitas conversas... O livro de Neale foi lido por mais de 7 milhões de pessoas em 36 línguas ao redor do mundo.

INVASÃO DE DOMICÍLIO(Breaking and Entering, EUA, 2006)
Drama - 120 min.
Direção: Anthony Minghella.
Roteiro de Anthony Minghella. Elenco: Jude Law (Will), Juliette Binoche (Amira), Robin Wright Penn (Liv), Martin Freeman (Sandy), Ray Winstone (Bruno), Vera Farmiga (Oana), Rafi Gavron (Miro), Romi Aboulafia (Orit), Kwesi Asiedu-Mansah (PC James), Helen Baker (PC Lorna Pearce), Emma Buckley (PC Erin Carter), Anna Chancellor (Kate), Caroline Chikezie (Erika), Mark Benton (Legge), Daon Broni (Yakubu).
Sinopse: Will Francis (Jude Law) e Sandy Hoffman (Martin Freeman) possuem uma próspera firma de arquitetura paisagística com preocupações sociais e ambientais, a "Efeito Verde". Recentemente eles se mudaram para a região de King's Cross, em Londres, o centro da mais ambiciosa regeneração urbana da Europa. Seu escritório, repleto com a tecnologia mais avançada, é alvo constante de ladrões. Cansado desta situação, um dia Will segue Miro (Rafi Gavron), um rapaz de 15 anos, integrante da quadrilha que assalta sua empresa. Will o segue até o apartamento em que mora com sua mãe, a costureira Amira (Juliette Binoche), uma refugiada bósnia. Na intenção de investigar o roubo, Will torna-se amigo de Amira. Porém ela logo descobre suas verdadeiras intenções e está disposta a tudo para proteger seu filho.
Notas da Crítica:
Ricardo Matsumoto, SET: 8,5/10
Sergio Nunes, Cinequanon: 4/5Alysson Oliveira, Cineweb: 3/5
Elie Politi, Cinequanon: 3/5
Erico Fuks, Cinequanon: 3/5

Airton Shinto, Shintocine: 5/10
Régis Trigo, Cineplayers: 5/10Pedro Butcher, Folha Ilustrada: 1/4
Leonardo Luiz Ferreira, Paisà: 1/5
Marcia Andrade, Cinequanon: 1/5
Tobey, The Bridge: 1/5

16 comments:

airtonshinto said...

CLÉBER EDUARDO, da Revista Cinética (eletrônica):
"A "fenômeno-patologia" do pequeno poder
Há uma dúvida suscitada por Amarelo Manga, estréia na direção de Cláudio Assis, que é parcialmente resolvida em Baixio das Bestas. Até onde os comportamentos dos personagens do primeiro filme, situados nas vizinhanças de uma mesma configuração social do Recife e condensados em um espaço geográfico nuclear (uma pensão), são produtos das condições do meio onde vivem? E por quais caminhos ali, se existe essa relação de causa e efeito, o ambiente formata o indivíduo?
A primeira resposta, ao nos instalarmos em Baixio das Bestas, é claramente afirmativa. Se algumas atitudes no longa de estréia poderiam soar patológicas, resultando em um desvio coletivo de psiques, agora a relação homem/ambiente é mais direta. Parcialmente, porém. Se em Amarelo Manga não há as razões, mas apenas os efeitos de um contexto visualizado na aparência dos espaços e na atitude dos personagens, a opção reflete o cinema brasileiro de hoje. Não tem interessado aos filmes voltados para as conseqüências da estrutura social detectar ou denunciar os mecanismos formadores da estrutura e de suas conseqüências. Importa somente como a “organização social” interfere na vida do indivíduo, abrindo mão do entendimento da comunidade em benefício da fenomenologia. Os problemas estão impregnados e naturalizados nos espaços. Parecem não surgir de lugar nenhum: são parte da vida. A aproximação com a desordem da sociedade se dá por alusão, pelo poder simbólico e sintetizador das ações, mas não por uma operação demonstrativa.
Baixio das Bestas segue, parcialmente (insisto), um outro caminho. Em seu prólogo em preto e branco, com imagens de torres de usinas desativadas e uma narração sobre o fim de um ciclo histórico, há a disposição de partir da causa. Uma determinada mudança na economia local está conectada com as experiências dos personagens. Não apenas nessa introdução, mas em alguns diálogos, o filme nos induzirá a essa relação. Embora isso o torne mais explicativo se comparado a Amarelo Manga, a opção está muito distante do risco de uma sociologia amadora e tatibitati. Pelo contrário. Se essa operação na introdução e nos diálogos nos induz a estabelecer a relação entre personagens, ambiente e situação econômica, não haverá nenhuma demonstração dessa relação na dramaturgia e, mais uma vez como em Amarelo Manga, será por meio do sexo e da violência que a estrutura social irá manifestar a sua linguagem: a da degradação da carne, menos pela prostituição tradicional, mais pela agressividade com que, na relação com putas ou virgens, os homens agem com os corpos femininos.
Mas como a mudança da economia local produz essa aberração? Não importa, na imagem e na dramaturgia, para Cláudio Assis. Importa que, ao usar aquela introdução e centrar o foco no atentado ao corpo, a relação se dá. Por indução, não demonstração. Feita essa associação de cara, o filme se lança, agora sim de forma menos fenomenológica, a um diagnóstico de sintomas. Cada personagem ali expressa em alguma medida aquele ambiente. Pode ser o velho ao mesmo tempo explorador do corpo de uma ninfeta e protetor de sua virgindade, a inocência brutalizada dessa garota e das prostitutas empregadas em sessões de tortura pela turma de dois rapazes de classe média, que são capazes de fazer qualquer coisa apenas porque sentem-se no direito de fazer qualquer coisa. A soma dessas situações e desses personagens compõe um painel local, caracterizado pelo uso da força e do poder contra o corpo, como faziam os coronéis, latifundiários e senhores de engenho com seus escravos. Em suma, como se via em Amarelo Manga, impera o imobilismo.
Isso não significa que, ao final, portas não se abram. O velho é atropelado em casa pelo ritual fora de época do maracatu, a menina livra-se dele, o cinema onde os rapazes de classe média faziam de tudo é fechado e o plano final termina com uma chuva purificadora. Se durante a narrativa são recorrentes os diálogos sobre uma fossa em construção, que ganha um sentido metafórico sobre a podridão daquele espaço ou ao menos de alguns personagens, essas conclusões para os três núcleos narrativos podem parecer libertadoras. No entanto, como não bastava para Dira Paes pintar o cabelo no fim de Amarelo Manga, de modo a se libertar de certa condição feminina, Baixio tem “fim em falso” (e não um fim falso). Em Amarelo Manga, as imagens de rostos das pessoas na rua desmentiam a potência transformadora do sorriso de Dira, como se, na mudança de cor de cabelo, houvesse uma falsa saída, provisória e enganadora, que não teria como frutificar em um ambiente de imobilismo. Esse mesmo gesto libertário de fachada, em outro sentido, veremos no sorriso de Auxiliadora (Mariah Teixeira), a adolescente, quando termina o filme em um bordel. Ela talvez esteja momentaneamente melhor, por ter se livrado do velho (Everaldo Pontes), mas talvez logo seja usada em sessões de tortura.
Há mais ambuiguidades e paradoxos nesses dois longas de Cláudio Assis, sobretudo em Baixio das Bestas, que suas imagens aparentemente pensadas para chocar e testar limites podem nos evidenciar. Em uma das primeiras seqüências, essa ambiguidade dá as cartas: o plano começa com a câmera no corpo da adolescente seminua, com uma luz “artística” a iluminá-la na penumbra. Vemos um recuo da lente até enquadrar o personagem de Caio Blat, Cícero, com uma expressão de repúdio em relação à atitude do velho, mas de desejo pela menina. O plano termina, sem corte desde o início, em uma cruz. Há nessa inserção no espaço uma série de signos que, se não necessariamente são decodificáveis de maneira tão direta, produzem uma atmosfera doentia, com uma naturalização entre os personagens, mas não pelo filme, de situações ameaçadoras de qualquer noção de limite e regulação.
Não está falando apenas por si, mas também por Baixio das Bestas, quando Everardo (Matheus Nachtergaele), olhando para a câmera em um cinema abandonado, diz que, no cinema, em última instância, pode-se fazer tudo sem limites. Fala por ele porque esse personagem, aparentemente, leu Nietzsche e Dostievski saltando as páginas. Acha-se superior a todos, tem desprezo pela humanidade e, conseqüentemente, exerce com sadismo sua superioridade. Não há lei para ele. É um perverso. Talvez haja relações possíveis entre essa figura ficional e outras contemporâneas dela em O Cheiro do Ralo e Cama de Gato, dois outros filmes nos quais a perversidade dos protagonistas também está vinculada ao poder deles sobre suas vítimas, criando uma espécie de universo sobre a patologia do poder e sua conseqüente banalização da vida, que não tem a ver com o mal radical (nascido de ideologia) e a banalização do mal (nascido da institucionalização), como analisados por Hanna Arendt, mas com a reciclagem de conceitos do século XIX sobre os limites da ação humana.
Mas Everardo, além de falar por ele, fala pelo filme. Não haveria uma mesma perversidade na permissividade de Cláudio Assis ao colocar em imagens essa sua aparente denúncia? Nenhuma resposta aqui pode ser definitiva ou conclusiva. Tomemos os aspectos mais complicados de Baixio das Bestas. Um é o esforço quase exibicionista com que o diretor transforma seus espaços e as experiências em massa de modelar. Está explícito o afastamento do realismo e a procura por uma noção de tableau em movimento – não muito distante das operações de mise-en-scène de um Jia Zhang Ke. O contraste entre luz e sombras se faz notar, a elaboração da cena pela câmera em lentos avanços e recuos evidenciam a construção cinematográfica, a seletividade na escolha dos lugares onde se coloca a câmera é “notável”. Não seriam essas estetizações, sem caráter pejorativo no uso do termo, atenuadoras da degradação? Não estariam procurando beleza onde querem expor a sujeira e a feiúra? Por que dessa opção? O que interessa, afinal, em Baixio das Bestas, são as experiências? Ou a maneira de olhar para elas?
Dependendo de quem estiver a responder essas questões, teremos diferentes respostas e argumentos, assim como a revelação de diferentes visões de cinema, diferentes critérios de se valorizar ou reprovar procedimentos. Ao assumir o formalismo da imagem e da mise-en-scène, Cláudio Assis produz, sim, um distanciamento em relação ao material e, também, um rompimento com os códigos da representação justa da realidade. Sua justa representação daquele universo é a justa representação de Cláudio Assis. Um mundo de Cláudio Assis. Ele é tanto mais autêntico como “olhar” quanto mais for de Cláudio Assis, com toda sua tendência para aliar repugnância à beleza, para extrair sua noção do artístico no pior de um ser humano em determinado espaço.
Cheguemos, para concluir, às mulheres. Um número razoável de espectadoras tem reclamado, desde o Festival de Brasília, de uma suposta misoginia de Baixio das Bestas. Não seria o contrário? A misoginia é a repulsa masculina à imagem e ao contato físico com as mulheres. Os homens do filme e o próprio filme poderiam ser perversos, por não terem limites na relação com as mulheres, mas em nada se aproximam de uma postura misógina. Se os personagens principais manifestam, por sua vez, desprezo violento por figuras femininas, não se pode confundi-los com o próprio filme. Até porque as mulheres, em Baixio das Bestas, são tratadas como vítimas, sempre agredidas pelos signos masculinos de poder da região.
No entanto, além de terem o corpo violentado pelos homens, como quase um dado cultural da Zona da Mata, elas são, para o filme e aos olhos dos espectadores, corpos em exposição. A câmera é atenta a nudez das atrizes, faz questão de nos dar a ver a beleza desses corpos, como se quisesse transformá-los em mercadoria para nosso prazer visual, mas, na construção narrativa, essa valorização da beleza das formas físicas, na verdade, potencializam a degradação dessa mesma beleza quando submetida à opressão masculina. Sem falar que, na cena em que Auxiliadora, no riacho, banha-se sem pressa, a beleza resiste à opressão, mesmo se apenas por um instante."

airtonshinto said...

MARCELO MIRANDA, do site Cinequanon:
"Baixio das Bestas: Rigor sem concessão
O diretor Claúdio Assis, novamente o aponta sua câmera para o cotidiano de trabalhadores na região do Recife – agora, na zona da mata regional, em meio à monocultura da cana-de-açúcar. Jovens sem rumo certo, prostitutas, garotinhas exploradas sexualmente. É um universo de pretensão realista, mas Cláudio Assis consegue imprimir um misto de verdade e construção com talento raro no cinema brasileiro. Ao mesmo tempo em que se sente a existência daquelas personagens, a aproximação deles rumo à compaixão de quem os assiste e a construção das imagens e dos planos insiste, a todo instante, em dar um tom quase fabular ao que se conta, como se aquela gente estivesse encenando um teatro muito próprio delas, com marcações e movimentos definidos.
O paradoxo está na funcionalidade do procedimento. Claramente ajudado pelo diretor de fotografia Walter Carvalho, o pernambucano usa e abusa de uma câmera rigorosa e não faz concessões em se colocar no filme através dela. Uma hora é o plano fixo a registrar conversas banais, brigas, contação de casos; outra hora é um travelling a partir do teto e passeando pelos cômodos de um prostíbulo – mesmo que o espectador enxergue perfeitamente os cenários montados, Assis consegue ligar o olhar não para a representação física do espaço, mas sim à imagética. É na crueza dos acontecimentos, na violência inerente nos personagens (e não inerente aos personagens) e no vazio de vidas cujo ciclo trabalho-azaração parece jamais ter fim que Assis atinge a autenticidade almejada.
O processo é mais bem sucedido que em “Amarelo Manga”. Se no seu filme de estréia o cineasta ainda demonstrava certa imaturidade e uma ambição que não condizia com as cenas na tela, em “Baixio das Bestas” Cláudio Assis radicaliza e vai fundo na proposta de expor um universo aparentemente sem saída. Há certo esvaziamento e reducionismo no jeito como constrói seus protagonistas – eles são como são e não existe respiro nem possibilidades de mudança (nisso, “Amarelo Manga” ainda tinha gente que buscava alguma coisa, e em determinados casos atingia altíssimo grau de modificação – como era o caso da personagem de Dira Paes). Se num filme puramente maniqueísta ou esquemático, tal reducionismo parecesse gratuito, neste longa de Assis reflete apenas um jeito de escancarar caminhos sem grandes perspectivas. A única a aparentemente sofrer mudança (a menininha explorada pelo avô) muda de ambiente, só para voltar a ser o que já era antes – um objeto de deleite a caminhoneiros e canavieiros.
Incrível como o rigor extremo de Assis parece funcionar em praticamente o filme inteiro. Quando se diz que o diretor está presente ao longo de toda a projeção, é num sentido estritamente autoral, de um artista que ousa em dar a sua cara ao trabalho apresentado. Assis parece respirar a cada cena de “Baixio das Bestas”. Cenas que não dialogam, a princípio. Um plano não carrega o outro, o corte vem ora seco, ora em fades, e a imagem surgida a seguir parece iniciar alguma outra ação, sem dar continuidade à anterior. Essa modernidade intensa vem carregada, em alguns casos, de simbolismos um pouco exagerados, como é o caso da invasão do grupo de maracatu na casa do avô. Mas Cláudio Assis, no talento de conseguir costurar cenas sem acorrentá-las, cria outro paradoxo: dá frescor a um processo narrativo que exige do espectador manter-se firme, por conta de seqüências nada “agradáveis” aos olhos – porém, com impacto genuíno pelos seus significados de construção e intenção. Só vendo. "

airtonshinto said...

PAULO SANTOS LIMA, do site Bravo! On Line:
"Entre irmãos, sempre há os mais comportados e aqueles mais agitados. Na pequena grande família que o cinema pernambucano contemporâneo vem constituindo desde o êxito de Baile Perfumado, em 1995, não é diferente. Entre parcerias múltiplas, com o diretor de um filme produzindo, atuando ou escrevendo o roteiro do longa de outro, há uma certa diversidade de posturas que acaba agregando todos. Existem os calmos, como os curta-metragistas Camilo Cavalcanti (paraibano, mas realizador em Recife de títulos como A História da Eternidade) e Kleber Mendonça Filho (do genial Eletrodoméstica); os mais agitados, como Lírio Ferreira (Árido Movie) e Paulo Caldas (outro paraibano); os filhos pródigos, como Marcelo Gomes (de Cinema, Aspirinas e Urubus); e os mais intensos, como Cláudio Assis, cujo primeiro longa foi o sagaz Amarelo Manga (2002). Ele retorna agora com Baixio das Bestas.
Entre bizarrices, instintos vazados e abusos de poder (sexual, sobretudo), o cinema de Cláudio Assis é único numa produção contemporânea meio arredia à nudez total, gemidos e proseado chulo. Seus tipos esquizóides passam de leve pelo universo de Nelson Rodrigues para chegar nas cercanias da pornochanchada, naquilo que ela tinha de mais franca como imagem. Claro que sob uma outra roupagem, pois é o celebrado Walter Carvalho quem assina a fotografia de seus filmes desde o curta Texas Hotel (1999), fotografando os enquadramentos rigorosos de seu filho, Lula Carvalho.
Baixio das Bestas é a radicalização dessas duas ordens: o rigor visual chega ao extremo, com enquadramentos meticulosamente pensados, e o assunto tratado é sobremaneira mais rascante que o de Amarelo Manga. Se antes as mulheres de Recife, mesmo que abatidas, faziam um belo levante contra o mundo opressor masculino (inclusive com a carola traída virando o jogo e sodomizando o machão do filme), agora as mulheres são vítimas totais dos algozes machos. Amarelo Manga ainda era um filme alegre, com seres entediados com a repetição inescapável das coisas, mas buscando uma saída do beco. Baixio das Bestas é um filme de morte, no qual, como a própria narração nos diz na primeira imagem, "o tempo engole o engenho, a ti e a mim". Se no filme de 2002 ainda se reagia contra os problemas do mundo, agora não há mais por que lutar. Em imagens, se Amarelo Manga tinha especial atenção às carnes bovinas e ao sangue (e à mulher como iguaria), a câmera de Baixio das Bestas tem predileção pelas carcaças. A história fixa-se numa cidadezinha anônima que está na UTI de sua história, cercada de canaviais esquálidos e moribunda após a falência da usina. Um lugar perdido não só na Zona da Mata pernambucana, como também em seu percurso histórico. Ainda que a produção material esteja esgotada, as relações de poder existem implacavelmente. E sempre por dinheiro ou sexo, ou os dois.
A predileção da câmera é pelo baixio, a periferia do lugar, onde ficam as prostitutas, as lavadeiras, os peões, canavieiros, a combalida mão-de-obra local. E, sobretudo, por Auxiliadora (Mariah Teixeira, premiada como Melhor Atriz no Festival de Brasília do ano passado), 16 anos, ingênua e reserva de pureza no filme. Do outro lado está a elite, com sua juventude também em crise, praticando seus sadismos.

DESCONFORTO
Se em Amarelo Manga a falta de solidariedade era um dado, mas nem tanto um problema, agora é o que potencializa os abusos. Assim, temos Auxiliadora explorada por seu avô, Heitor (Fernando Teixeira), que a coloca nua para defender uns trocados com os caminhoneiros onanistas. Há Cícero (Caio Blat) e Everardo (Matheus Nachtergaele), os playboys que literalmente violentam o mulherio da redondeza. Tudo isso ao lado da violência entre as meretrizes e dos desocupados que preenchem a agenda vazia comentando sobre a vida alheia, humilhando-se ou cavando uma fossa inútil. Essa situação desconfortável, que aponta o ser humano como animal predador, aumenta sua sombra quando o maracatu praticado na região se faz belo, como aquele que vemos nos desfiles de Recife registrados pela televisão. A árvore da cultura nacional cresce naquele lamaçal?
Mais incômodas são as cenas de abuso sexual, uma delas vista como sombra na tela de um cinema fechado, imagem que comprova que o cinema, para Cláudio Assis, permite fazer o que ele quiser. Mas Baixio das Bestas não é apenas um circo de horrores. Há um belo espetáculo de imagens, sensivelmente captadas. Sua mais bela tomada é a de um lavrador matando a sede meio na contraluz, torcendo implacavelmente um pedaço de cana para lhe tirar a seiva, decretando impiedosamente o fim daquele vegetal. Grande imagem-síntese, pois se o mundo é mesmo desse modo como nos mostram os filmes de Cláudio Assis, que ainda haja nele alguma beleza."

airtonshinto said...

RODRIGO CARREIRO, do site Cine Reporter:
"Assistir a um filme de Cláudio Assis é dar uma espiada dentro da alma torturada do mais pernambucano de todos os cineastas do chamado Cinema da Retomada (pós-1994). Segundo longa-metragem da carreira do diretor, “Baixio das Bestas” (Brasil, 2007) dá um passo à frente na já ousada carga pesada de imagens de sexo e violência presentes em “Amarelo Manga” (2003), e oferece um produto cinematográfico ainda mais explosivo e coeso. É um filme extremamente agressivo, que tem gosto pela polêmica e se caracteriza por um paradoxo rico e interessante: o contraponto entre a temática subversiva (diálogos explosivos e viscerais, imagens explícitas de perversões sexuais) e composições visuais clássicas, de grande rigor formal.
Premiado nos importantes festivais de Brasília e Roterdã (Holanda), em 2007, “Baixio das Bestas” confirma que o interesse do cineasta, nascido em Caruaru, é se mover nos intestinos da sociedade, expondo suas partes podres através de personagens com desvios de comportamento rumo a extremos de violência e sexualidade. Utilizando uma série desnorteante de imagens fortes, apresentadas com desembaraço e agressividade, a narrativa costura habilmente as histórias de uma dúzia de personagens que sobrevivem como podem ao imobilismo sócio-econômico de uma pequena cidade da Zona da Mata pernambucana, dominada pela monocultura da cana-de-açúcar. Reunindo vários pequenos contos que usam como fio condutor o mesmo espaço geográfico, o filme compõe um mosaico da vida na região, como um Robert Altman embriagado. “Baixio das Bestas” arde no estômago como um copo de cachaça.
Os personagens são divididos em três núcleos. Há as prostitutas (Dira Paes, Marcélia Cartaxo, Conceição Camarotti), que passam os dias pintando as unhas e esperando a noite chegar. Há os burgueses de roça, rapazes ricos e desocupados, que dirigem picapes envenenadas, enchem a cara, fumam maconha, assistem a filmes pornográficos num cinema abandonado e têm uma quedinha especial por estupros. E há os velhos da cidade, que se reúnem todos os dias num boteco para jogar sinuca, dominó ou baralho, enquanto tagarelam sobre a falta de perspectiva de quem mora naquele lugar onde nada acontece. Todos parecem presos em rotinas circulares e sufocantes. Um cenário propício para que a cultura arcaica, machista e patriarcal do lugar faça aflorar perversões sexuais que o cinema comercial não tem coragem de abordar. Claro que um filme de Cláudio Assis não tem nada de normal.
Quando exibido em Brasília, o título foi recebido com espanto, provocando reações extremas. Ganhou vários admiradores, mas muita gente se sentiu incomodada com o espetáculo dantesco de degradação a que alguns dos personagens são submetidos. Na cerimônia de premiação, quando foi agraciada com seis troféus, a produção recebeu aplausos e vaias em doses iguais. A reação é compreensível, porque “Baixio das Bestas” ocupa um lugar na cinematografia brasileira contemporânea que não é freqüentado por nenhum outro cineasta. Ninguém faz filmes como Cláudio Assis, goste-se dele ou não. É um cineasta de extremos, que se recusa a filmar apenas para demonstrar habilidade na manipulação dos elementos fílmicos, ou para pagar as contas. Assis filma porque sente uma necessidade irreprimível de se expressar, ainda que de forma caótica e violenta, quase rancorosa.
Aí está um cineasta que merece o rótulo de autor. Via de regra, o trabalho de Assis tem como máximo objetivo aplicar choques de realidade na platéia. O cineasta acredita que só assim é possível arrancar o público da letargia em que o cinema de puro entretenimento o mergulhou. A filosofia de vida dele é viver intensamente, deixando todas as emoções aflorarem, inclusive as mais negativas; aproveitar passar pela vida com tanta intensidade quanto possível; arder como fogo. O diretor vive assim, seus filmes são assim, e seus personagens também refletem isso. São gente do povo, gente que usa dentadura e tem mais defeitos do que virtudes. Gente que com freqüência interrompe diálogos expositivos para vociferar frases soltas, como uma filosofia repleta de palavrões, que carregam a assinatura do diretor. Quem conhece Cláudio Assis vai reconhecer nas imagens e palavras de “Baixio das Bestas” a alma atormentada e agressiva do cineasta – e isto é um elogio. Afinal, as melhores obras não são aquelas que dizem algo a respeito do artista que as cunhou?
“Baixio das Bestas” é um filme incômodo. Os espectadores que já reclamavam do forte teor de sexo (o incrível plano-detalhe dos pêlos púbicos de Leona Cavalli) e violência (a vaca sendo morta a facadas) de “Amarelo Manga” talvez precisem manter distância deste título aqui. Estupros, pedofilia, voyeurismo, prostituição e todos os tipos de perversão sexual ganham na tela um retrato visceral, cheio de energia, realçado pela maravilhosa fotografia (assinada por Walter Carvalho) em tons esverdeados e de terra. A luz do filme, primorosa, não apenas marca uma distância segura das tonalidades esmaecidas e urbanas de “Amarelo Manga”, mas também reflete com propriedade a cor e a textura de uma cidade da zona da mata, com suas estradas de barro e canaviais, botecos sem iluminação e maracatus.
Na concepção visual de “Baixio das Bestas” também aparece o mais rico paradoxo que envolve os talentos de Assis. Por trás do amor pelo grotesco deste diretor subversivo por imagens explícitas de sangue e sexo, está um cineasta disciplinado e de grande rigor formal. A estética de “Baixio das Bestas” não é, como se pode imaginar, despojada e irresponsável; pelo contrário, é meticulosa e sofisticada. Composições visuais e movimentos de câmera elegantes exprimem um autor de olho apurado. Há nítida preferência por planos fixos, que muitas vezes eliminam intencionalmente uma parte da ação (que ocorre portanto fora do quadro). Assis é também adepto de posições de câmera radicais, abusando de plongées em que a câmera olha de cima para baixo num ângulo de 180 graus (“a perspectiva de Deus”, diria Pauline Kael).
Outra estratégia visual muito comum do diretor consiste em revelar aos poucos a íntegra de cada ação, com travellings laterais suaves. Esses movimentos freqüentemente revelam elementos novos, que põem a composição inicial do quadro em nova perspectiva e exige um ajuste na atenção do espectador – é preciso estar sempre atento para novidades, mesmo nas tomadas mais longas, em que nada parece acontecer. Ótimo exemplo está no primeiro plano do filme, logo após as imagens de usinas no prólogo. Vemos inicialmente o exterior de uma velha igreja, à noite. Pela direita, entram no quadro um velho (Fernando Teixeira) e sua neta de 13 anos (Mariah Teixeira). O homem arranca as roupas da criança, deixando-a nua, parada e em pé. Aí a câmera se afasta, num lento travelling para trás, desnudando finalmente o cenário completo: dezenas de espectadores que pagaram para conferir o bizarro show de streap tease pedófilo. Nesta tomada sem cortes, breve e silenciosa, estão reunidos todos os elementos importantes do cinema de Cláudio Assis: o sexo, a polêmica, a controvérsia, a denúncia social e o rigor formal. Belo filme."

airtonshinto said...

CID NADER, do site Cinequanon:
"A má tentativa de conduzir o modo de olhar

Quando, em seu primeiro longa-metragem ("Amarelo Manga"), alguém vomita no chão e a câmera direciona seu foco para um gato que passa a comer o antepasto indigesto a olhares mais sensíveis, algo de agressão gratuita toma força, dentro de um filme que "se pretendia" avassalador por denúncias concretas e coerentes, externadas através do veículo que serve como luva para exercícios de tal graduação, que é o cinema. Já antes, durante o transcorrer da película, situações se avolumavam com uma inequívoca vontade na busca do choque, que se faziam compreendidas, para olhos mais encantados e menos desconfiados, como algo inovador e corajoso, vindo de um diretor (Cláudio Assis) que estaria transgredindo os bons modos, com as mais nobres das intenções. Mas, escorregadas daqui, vômitos comidos dali, e um olhar um pouco mais atento e menos complacente – ou menos ansioso em busca da "grande coragem" – perceberia que aquele filme mais prometia e "gritava" por altos berros do que entregava em inovação provocativa. Havia sim um grande mérito contido naquele trabalho inicial, que estava numa espécie de "olhar antropológico" do filme sobre a periferia de Recife, sobre seus trabalhadores, sobre seus filhos menos nobres. Por conta desse apêndice documental embutido dentro da obra ficcional, nutri sempre a esperança de que um segundo trabalho poderia vir mais honesto e realmente desnudado, mesmo se o assunto abordado fosse ainda em torno da vida dos execrados sociais, dos parias, dos "outros".
Agora o diretor surge com sua segunda obra em formato de longa, aguardado ansiosamente por quem não quis ver gratuidade e superficialidade na primeira, e também por quem queria tentar ver o progresso natural que poderia surgir pelas "possibilidades" que sobraram no ar nos tempos de "Amarelo". "Baixio das Bestas" vai à busca, novamente e como não poderia deixar de ser, das esferas mais isoladas, marginais, da sociedade constituída e comportada. Mais ousadamente, porém, poderia dizer, abre seus tentáculos em busca dessas periferias, e quando os fecha, trás junto um quinhão do lado mais "comportado" e bem estabelecido, para embaralhá-los e tentar demonstrar, no momento em que as figuras são distribuídas dentro do filme, que de perto ninguém é normal mesmo, e que as maiores maldades e "excentricidades" estão mesmo na cabeça e no âmago dos oriundos do lado do "bem".
Baixio, conta histórias de prostitutas; conta histórias de pedofilia; conta histórias de "mauricinhos" que expõem sua verdadeira índole nos momentos em que se defrontam com os desprotegidos em momento de superioridade – seja ela qual for. O cenário foi deslocado para a Zona da Mata pernambucana, onde só existe cana-de-açúcar e prostituição; muita riqueza e muita pobreza; tudo lado-a-lado, num ambiente propício para que as doenças da sociedade tão almejadas pelo diretor aflorem e possam ser utilizadas. O filme cria um velho moralista, Heitor (Fernando Teixeira), botando para fora sua verdadeira faceta quando explora a figura da própria neta de 16 anos, Auxiliadora (Mariah Teixeira), desnudando-a, em um posto de gasolina, para olhos ávidos e doentios de adultos ávidos e doentes. Expõe a situação de prostitutas, em sua miséria, em sua falta de porvir, e joga-as à insana valentia de jovens brancos burgueses, drogados (agroboys), superiores; donos da lei; com porvir. Situações e possibilidades mil para se aumentar o mito de um diretor que se indigna e tem coragem para fazer de sua indignação filme.
Mas Cláudio Assis novamente criou uma obra que falta com a verdade. Sob o pretexto da denúncia, sob o pretexto de que com sujeira se trata da sujeira, ele continuou a provocar o público com imagens fortes e situações fortes. Aliás, ele diz que quem vaia seu filme está acostumado com o lugar comum, diz que os que vaiam não têm coragem, não querem ver, e que, se sentem indignados porque têm seu inconsciente tocado pelo filme. Mas falta com a verdade sobre o que seria realmente o alvo de seu petardo. Se em "Amarelo Manga" havia uma crueza e uma dureza que me pareceu sempre ter como objetivo a provocação pela provocação, o choque pelo choque, em "Baixo das Bestas" o impacto pretendido piorou quando abdicou de tal "sinceridade", para optar pelo adorno visual, pela exuberância da imagem, pelo brilho dado à "sujeira". A fotografia é de Walter Carvalho e, como sempre, interfere decisivamente. Quando Assis e Carvalho optam por percorrer o prostíbulo com um travelling tomado de cima, um espetáculo plástico está armado, na mesma medida em que surge uma desconfiança sobre o por quê. Quando, na cena fortíssima da barbaridade cometida contra a prostituta o foco desloca-se do real para ir ao imaginário das sombras projetadas numa parede branca, ao mesmo tempo em que o estupor pode tomar conta do público, o algo de desconfiança das reais razões para tanto virtuosismo acumulado abandona a conceituação de "desconfiança", para adotar uma certeza que não condiz ao propalado pelo autor.
O filme revela-se uma nova obra de Assis com "falsidades" que invalidam um discurso oral agressivo e contestador. E, diria até que pior nesse segundo caso: porque, se resolvesse me desarmar e adotar a crença dos admiradores, poderia enxergar nas contundências de "Amarelo" um exagero pela excitação da primeira vez; mas, como explicar a excelência visual – não resta dúvida que, como trabalho isolado de um diretor de fotografia, esse chega a ser dos mais belos executado por Carvalho, com incríveis tomadas da natureza (incríveis mesmo) – adotada, dentro da "proposta" Assis de denúncia das doenças sociais. Não combina. Não a meu modo de ver; ao menos. "

airtonshinto said...

CLÁUDIO MARQUES, do site Coisa de Cinema:
"Construído a partir de um roteiro inteligente e formado por trabalho de som e imagem impressionantes, Baixio das Bestas (2006) é um filme que retrata situações de extrema violência, física e moral.
Essa explosiva combinação (talento na realização x brutalidade das situações) gera grande desconforto, uma vez que a violência do filme tende, a um tempo, ser completamente rechaçada sem nenhum tipo de reflexão (os que odeiam a película) ou apreciada devido à beleza da composição fílmica (os que amam). Baixio não transita pelo meio, está nos extremos.
Em Baixio das Bestas, há uma falta de pudor absolutamente pornográfica, ficando o espectador exposto a uma espécie de teste: até que ponto é possível suportar tais situações? Há algo de muito perverso nesse laboratório promovido pelo cineasta Cláudio Assis e não serão poucos a se indignar.
No longa, o diretor pernambucano seleciona uma comunidade isolada da Zona da Mata de Pernambuco, em total declínio financeiro e moral. Assis promove espécie de sublevação dos infernos e tenta trazer à tona tudo de pior, notadamente do homem contra a mulher.
O filme já se inicia poderoso e obsceno, num ambiente de penumbra amarelada e em meio a sussurros. Uma adolescente (Mariah Teixeira), obrigada por seu pai, se desnuda em frente a um bando de homens que se masturbam diante da jovem, que carrega o atrativo de ser ainda virgem. Um leve e constante movimento de câmera revela a situação aos poucos, delicadamente, expondo ambiente tenso e doente. A partir dali, tudo ficará ainda pior.
Baixio é formado por diversos núcleos de ação, que se cruzam sistematicamente, numa espiral cumulativa e sempre crescente. Com muita segurança, nenhuma história se enfraquece, nenhum núcleo é deixado de lado durante todo o filme. Como se disse, é um filme de gente talentosa.
Num desses núcleos, um jovem de classe média (Caio Blat) dorme durante todo o dia no sofá de casa. À noite, se encontra com o amigo (Matheus Nachtergaele) e juntos irão beber e se divertir com as prostitutas da região. Como ambos são jovens, bonitos e com dinheiro, fazem e desfazem, transformando o ofício milenar num terrível martírio. Duas seqüências de estupro perpetradas pelos jovens se sucedem durante o filme, ambas igualmente terríveis pelo grau de violência e perversidade, tanto dos personagens quanto do diretor.
Na primeira delas, a câmera desenvolve improvável percurso até chegar ao teto do quarto. Do alto, o espectador pode acompanhar todo o ato violento. Assiste a tudo, de camarote. Na segunda, ainda mais violenta, uma moça de corpo exuberante e em estado de festiva embriaguez (Dira Paes) se envolve com os rapazes (Caio e Matheus), que a violentam de forma impiedosa. Assis, desta vez, parece poupar o espectador e o conduz a um jogo de sombras. Mas, triste engano!, uma vez que o artifício não serve para atenuar, mas para ressaltar ação que seria impossível mostrar frontalmente. A duração da cena é dilatada, os gritos ecoam pelo cinema.
É necessário dizer que o filme não se resume a essas cenas, existem outras situações mais sutis e simbólicas. Mas, não há como negar o impacto causado pelas sequências descritas. Elas “colam” na memória, representam o ápice dramático da película.
Cláudio Assis costuma dizer que a sua intenção, antes de mais nada, passa pela denúncia das atrocidades cometidas contra as mulheres e que Baixio deve servir para conscientizar a sociedade.
Mas, o filme parece ser concebido para o eletrochoque inicial, apenas. Pouco sobra para depois, além da discussão sobre o próprio filme, os limites ultrapassados ou, num outro viés, a qualidade da realização, sobretudo técnica.
Colabora para tanto o maniqueísmo na construção dos personagens. De um modo geral, ou são maus ou vitimas, ou, ao menos, em situações que os delatam como tais.
Pelo recorte esquemático, Baixio das Bestas carrega questões morais de representação tão graves quanto Cidade de Deus, por exemplo, filme que atraiu a ira de uma imensa parcela da população, tão rica culturalmente quanto diversa e que se sentiu estigmatizada pelo filme de Fernando Meireles.
A diferença básica entre os dois filmes, de toda forma, é que o longa de Assis não possui uma roupagem fake e uma montagem “divertida”, veloz. Pelo contrário, através de uma montagem sóbria, câmera fixa e tempo para se apreender cada fotograma, Baixio das Bestas torna-se um filme sério, de verdade. Tão mais sério quanto impactante e perigoso.
Assis costuma afirmar que o seu filme “... se passa num lugar onde você não é nada e termina sendo ninguém”. O que diria um morador da Zona da Mata ao se ver retratado dessa forma no cinema?
Pode-se argumentar que o filme não é sobre aquela comunidade, mas sobre o ser humano, o mal que nos habita. Que o Baixio das Bestas é um lugar nenhum, ambiente fabular construído por Cláudio Assis. É uma leitura possível, mas o que se vê realçado durante toda a projeção é justamente o fortalecimento da ligação entre os acontecimentos com a cultura local.
Lembremos que em Amarelo Manga, Cláudio Assis já reforçava a associação de suas histórias com a realidade ao mostrar a o rosto de diversas pessoas no final da película. É uma identificação complicada de ser feita, para dizer o mínimo.
Por outro lado, parece ingênuo acreditar que ao realizar recorte tão estreito, trazendo à tona tal ambiente radicalmente doente, será possível sensibilizar a sociedade.
Lembro, aqui, ensaio de Susan Sontag (1933-2004), intitulado Diante da Dor dos Outros (Companhia das Letras, 2003), no qual a autora americana recorda que desde que os primeiros fotógrafos revelaram as atrocidades cometidas durante a Guerra de Secessão Norte Americana, criou-se esperança de que o ser humano, a partir dali, poderia tomar consciência de si mesmo e se aprimorar, recusando-se a perpetrar novos atos bestiais. Mas, veio a I Guerra Mundial, depois a II Guerra, Coréia, Vietnã, Rio de Janeiro, São Paulo, Iraque.... a coisa não melhorou muito. As cenas de violência tornaram-se fetiche, espetáculo de um mundo cada vez mais dependente do audiovisual.
Concebido como uma “experiência extrema”, o filme pode ser considerado bem sucedido. E, talvez, nesse sentido, venha sendo reconhecido. Sob as vaias do público, a película foi considerada a melhor em Brasília, em novembro último. Agora em janeiro, foi um dos ganhadores no festival de Roterdã, um dos principais do mundo."

airtonshinto said...

ALYSSON OLIVEIRA, do site Cineweb:
"Como em seu longa de estréia, Amarelo Manga (02), o diretor Cláudio Assis procura sacudir o público abordando um universo decadente, no qual crueldade, prazer e morte se cruzam sem distinção.
Essa decadência é apresentada logo nas primeiras imagens, onde se vê um engenho abandonado e a narração cita diálogos do filme Menino de Engenho, de Walter Lima Júnior. Com a frase "o tempo vai consumir os engenhos, as usinas, a mim, a você”, começa um calvário num mundo de mentes e atos doentios.
Um homem velho (Fernando Teixeira) desnuda uma garota atrás de uma igreja. A cena é vista por um grupo de voyeurs, que inclui agroboys e caminhoneiros, que pagam para admirar a nudez da menina. Ela é Auxiliadora (Mariah Teixeira), de apenas 16 anos, que vive com esse homem, que é seu avô. Alguns sustentam que, na verdade, ele é o pai dela.
Dependente deste falso moralista, Auxiliadora não tem muitas opções na vida, a não ser seguir as ordens dele. Para justificar a exploração da neta, ele diz que ‘a necessidade faz o cavalo e o cavaleiro’.
Entre os admiradores de Auxiliadora está Cícero (Caio Blat), jovem de família rica que estuda em Recife e volta nos finais de semana. Com outros amigos, entre eles Everardo (Matheus Nachtergaele), promove orgias num bordel local ou num cinema abandonado. O trio de prostitutas é formado por Dora (Dira Paes), Bela (Hermila Guedes) e Ceiça (Marcélia Cartaxo).
Em contrapartida a esse mundo de podridão, Baixo das Bestas mostra um lirismo colorido e melancólico num grupo de pessoas que se fantasiam para participar de eventos carnavalescos. Em algumas cenas, a brutalidade daquela cidade da Zona da Mata é momentaneamente ofuscada pelo brilho das lantejoulas e fantasias.
Neste universo, os homens são cruéis e as mulheres, oprimidas. Retratar esse comportamento rende ao filme cenas assustadoras, embora haja também espaço para beleza visual, ainda que pese a repugnância por alguns personagens e seus atos. Numa das cenas mais polêmicas do filme, um estupro é mostrado como se fosse um teatro de sombras, misturando o brutal com a insinuação erótica.
Num outro momento, em que o grupo de amigos está no cinema abandonado, vendo trechos de filmes antigos com cenas de sexo explícito, Everardo diz que a melhor coisa do cinema ‘é que nele tu pode fazer o que tu quer’. Parece até que é o diretor falando através de seu personagem. Para Assis, o cinema não parece ter limites para fazer denúncias, retratar a sociedade e causar incômodo.
No Festival de Brasília 2006, o longa levou os troféus de melhor filme, melhor atriz (Mariah Teixeira), melhor ator coadjuvante (Irandhir Santos), melhor atriz coadjuvante (Dira Paes), melhor trilha sonora (para o músico Pupillo) e também o prêmio da crítica para longa-metragem 35 mm."

airtonshinto said...

DANIEL OLIVEIRA, do site Pílula Pop:
"Não há sentimentos bons em “Baixio das bestas”. Seu Heitor explora sexualmente a neta Auxiliadora (que também é sua filha) e vive à custa de seu trabalho. Ela, em silêncio, odeia o algoz e, buscando uma saída, seduz Maninho, mas ele só faz encher a cara e amaldiçoar reciprocamente o velho.
A suposta virgindade de Auxiliadora atrai a sede insaciável de destruição do playboy Cícero (Blat). Ele odeia a mãe, que o trata como uma decepção, e vive em pé de guerra com os amigos liderados por Everardo (Nachtergaele), na repressão de uma homossexualidade latente. Juntos, eles violentam as prostitutas Ceiça, Dora e Bela (Paes) – sendo usados por essa última para concretizar o ódio pela segunda e para realizar suas perversões, no que é desprezada pela primeira.
O diretor Cláudio Assis filma isso que Heitor chama de “a bosta do mundo” (ou um mundo de bosta?). Sua câmera, ainda se movimentando com a fluidez de um Altman, aprendeu a parar. E nesses quadros fixos, aprendeu também a se distanciar numa auto-indulgência estética e fria. Ao contrário de “Amarelo Manga”, a câmera não se envolve com os personagens, não dança com eles – ela os observa impassível, indiferente, irresponsável.
Esse quadro todo explode no fim em um festival de estupros (belamente iluminados), violência (nas atuações viscerais), humilhação física e psicológica (perfeitamente dirigidas). Na ausência de bons sentimentos e com uma câmera esteticamente fria, resta ao público ser a última peça do quebra-cabeça-monstro, dando a ele sentido, e se sentir bem consigo mesmo na sua ânsia de vômito (tão humana e compassiva). Assis, Deus de seu universo, quer incendiá-lo como a Sodoma e Gomorra, mas o faz somente no fogo do canavial, metaforicamente, como um bom artista – se é que isso existe.
Só o que há em “Baixio” é a aridez do Nordeste, que anula a sensualidade dos corpos tornando-a repulsiva, e a escuridão. Escuridão do filtro usado por Walter Carvalho para abafar a luz do sol escaldante e da sala de cinema freqüentada pelos playboys. A única luz realmente clara do filme é aquela no rosto de Everardo, quando ele afirma que “no cinema se pode fazer de tudo”. Mas no cinema se faz, no cinema se paga. Se “Irreversível”, filme-primo deste, gritava que o tempo destrói tudo, “Baixio das bestas” grita que não destrói nada, pois não há mais nada a destruir – só escuridão, podridão e merda, numa aceitação, tão inerte quanto seus quadros fixos, disfarçada de cinema-indignação.
O pior de tudo? Os bóias-frias continuam no caminhão para o trabalho depois de cada degradação orquestrada por Assis. O mundo não pára."

airtonshinto said...

FELIPE BRAGANÇA, da Revista Cinética (eletrônica):
"Culpa da beleza
Baixio das Bestas é um objeto cinematográfico interessado em perversões. Perversão no sentido mesmo da desestabilização de uma certa ordem de coisas da qual se define um status quo e uma possibilidade de inversão de valores, colocando-se em um "lado de fora" da ordem. Note-se: não me interessa aqui falar de contundência, mas de cinema. Do que se compõe em imagem e de como ocupa a imagem.
Até que ponto, então, esse desejo de perversão consegue se realizar como desejo primeiro ou de que forma ele não se distancia do corpo do filme se tornando um objeto de intenção? Baixio das Bestas carrega esse dilema como cerne: o desejo, a perversão do corpo, a violência do corpo é elemento componente ou objeto-status quo observado? O fetiche pelo corpo nu, pela violência do corpo é algo que interessa a Cláudio Assis como estatuto-expressividade estética ou como dado cultural? Não há, aqui, atentemos, uma preferência por este ou aquele caminho – apenas a observação de que a forma como os corpos são gerados em cinema parece ter um dilema essencial que não consegue se exprimir nesse segundo longa-metragem de Assis: falar do desejo e da violência pela imagem ou desejar violentamente uma imagem?
O sexo, como ato ou como tensão do ato, neste segundo filme de Cláudio Assis, aparece novamente como negatividade instintiva (assim como já acontecia no semi-rodriguiano Amarelo Manga) mas em Baixio das Bestas aparece agora não mais como espécie de condição existencial (de uma certa poética amarelada do Recife) mas como dado cultural-social da decadência moral-econômica de um "universo" naturalista. As “bestas” do filme, os proto-personagens todos, agem e reagem levados por encenações de instintos e atuando posições sociais em que correspondem a uma certa lógica-painel de um sentimento/projeto comum de um mal-estar vistoso, expressionista.
A poética do filme se localiza, portanto, na forma como a câmera e a luz de Assis-Walter Carvalho vai circular por esse conjunto de situações sintomáticas, nessas funcionalidades cênicas. Repetindo melhor: há uma desarticulação entre o sentido das cenas e dos sentidos em cena. De alguma forma, diria, um naturalismo festivo. Se de alguma forma o que se filma parece ser querido como gestos de negatividade, por outro, a imagem, idolatrada pela câmera, parece colecionar uma iconografia, um gestual do belo no que se nega como vivacidade.
Culpa da beleza. Essa talvez seja o maior efeito estético do cinema de Cláudio Assis até aqui: suas imagens, excitadas, parecem culpadas pelo prazer que sentem diante do que o sentido dramatúrgico quer localizar como negação da beleza. A bestialidade do filme não parece ser vivida pelas imagens, mas sim culpabilizada, dolorida, recalcada por elas. O sexo não se encontra ali com o prazer, com a explosão de sentido corporal, mas se dá sempre como uma certa moralidade desviante a serviço de um estado de alma desassossegado. Dessa forma, a bestialidade do filme (e sua suposta vertente naturalista) se torna falsa, engessada, quando se submete a um jogo, um conjunto de desejos de poder, de dualidades de sentimento, que não apontam para a liberdade do bestial comportamental. Muito menos para uma suposta “liberdade do cinema”.
Baixo das Bestas é todo ele, uma paixão triste, culpada, engessada por uma espécie de vibração, de roçar - um masturbar de uma imagem que não quer dizer seu nome, que parece não se ver como ato vivaz em si mesma.
A busca por uma certa coloquialidade nos diálogos, interpretações "soltas" e algumas composições de quadro que indicam uma casualidade dos gestos encenados – se tem resultados coerentes e virtuosos isoladamente – parece se localizar como uma equivocada cama, uma muleta cênica para uma referencialidade cotidiana – um falso "filme de personagens e espaços" que na verdade não consegue, ou não quer mesmo conseguir, deixar de ser um filme de imagens-enunciados e esquetes-alegóricos.
Penso na perversão gráfica e no prazer desgovernado presente em alguns momentos de Pasolini, ou ao reverso, na frieza animalesca dos bichos de Bruno Dumont: Cláudio Assis parece não ter se definido ainda, ou melhor, composto ainda uma indefinição consistente, para a natureza mesma das suas imagens. A câmera vê, a câmera vomita imagens. Entre a observação, a coloquialidade e a declamação gráfica de efeitos de câmera (a fotografia vultosa de Carvalho é sempre uma faca de dois gumes), é interessante que o cineasta procure uma verdadeira natureza/qualidade, não daquilo que ele olha, mas daquilo que é seu olhar.
A imagem como perversão do mundo ou a imagem da perversão do mundo? O Prazer do corpo ou o desejo discursivo? O estilo como desejo dos corpos ou como fetiche do diretor? Não à toa, as imagens do mexicano Carlos Reygadas (Japón, Batalha no Céu) vem à cabeça: um certo querer o choque como religião (e não como ética); o mal-estar como antídoto do desejo negativizado, as iconografias sociais psicologizadas da degradação cultural (a questão do maracatu comercializado e das procissões humilhantes de Batalha no Céu se cruzam) servindo antes ao fetiche do estilo, ao gozo do estilo. Uma forma de olhar que não se liga aos corpos filmados, mas se desliga deles e se mostra superior, avesso, "de fora" (per-verso), maquinando um espanto cinematográfico mais ideológico do que físico.
“Ou come ou sai logo de cima!” – a expressão popular tosca talvez defina de maneira mais direta o dilema que me parece estar nas entrelinhas do desejo de imagem em Claudio Assis:
Olhos para baixo, para “Baixio”, é um cinema em que a carnalidade incomoda, não vive – e não vivendo, não sonha. E em que os olhos, nossos também, ficam procurando fogaréus, coisas bonitas, chuvas vistosas, cores em movimento que Carvalho nos supre, movimentos de câmera que nos redimam, que nos deliciem com alguma beleza num fora-dali que simplesmente abandone aquele mundo (como a fossa-cova filmada em extremo plongée apontado ou a "liberdade" do olhar de Matheus para a câmera sugerem uma fuga de território, um céu sem cinema).
Fica aqui, então, o interesse por se pensar um cinema em que a estrutura do desejo esteja na mesma pele que se filma. Não em contraponto ou em composição social-culturalista e, muito menos, como elemento moral de contra-poesia ou contra-moral. Toda poesia é sempre a favor de seu estado de alma. A favor de que a poética Assis aponta sua liberdade? Até segunda ordem, sua cinematografia se desenha com um canto do desamparo e da tristeza da IMAGEM diante de sua impossibilidade de compartilhar prazer, somente de tomá-lo a força (!) não como uma afirmação do ser, mas como sublimação do que este recalca. Um filme católico, antes de tudo. "

airtonshinto said...

LUIZ FERNANDO GALLEGO, do site Criticos.com.br:
"Em uma cena de Baixio das Bestas vemos uma sala de cinema abandonada, em ruínas. O personagem Everardo – ou o ator Matheus Nachtergaele - fala com os olhos voltados para a câmera (ou seja, para o espectador): “O que é bom no cinema é que você pode fazer o que quiser” (cito de memória, mas era algo neste sentido). Desde que Bergman fez Harriet Andersson olhar para a câmera longamente no final de Mônica e o Desejo, alguns diretores se permitiram esta tomada de seus atores - ou de seus personagens – “quebrando” a ilusão de naturalismo da narrativa e questionando - ou apenas “encarando” - a platéia, interferindo na habitual suspensão de descrença do espectador em relação ao que se passa na tela. Quando esse recurso é utilizado, somos lembrados que aquilo é “apenas” um filme, uma realidade virtual com grande poder de convencimento e envolvimento. Neste filme de Cláudio Assis, onde o que domina é uma forte intenção "realista", o recurso surge apenas tolo, sem outro sentido do que enunciar uma banalidade como se fosse uma reflexão ambígua e muito esperta sobre o cinema (local da projeção de filmes) e o cinema (os filmes e sua linguagem). É um momento forçado no corpo do filme, gratuito. Por outro lado, o que não parece gratuito em um filme tão pretensioso e com um “corpo” tão desarticulado como este Baixio das Bestas?
O espectador acompanha alguns personagens – a maioria bem canalha – em situações e atitudes sórdidas, com a justificativa de estar retratando uma realidade miserável e mesquinha, seja no plano existencial, seja no terreno ético, seja ainda - e principalmente - nos (des)encontros das desigualdades sociais e sexuais. Os blocos narrativos aparecem intencionalmente “soltos”, reproduzindo clichês de uma pretensa linguagem cinematográfica contemporânea. Os fios das histórias que se cruzam vão sendo desenvolvidos episodicamente sem visar “conclusões” evidentes. São mostradas cenas bizarras como a do estupro de uma prostituta com pedaço de madeira (visto apenas em sombras, ainda bem) e outro estupro, o de uma mocinha que o avô exibia nua para a peãozada se masturbar (como se fosse um peep show de pobre); outra prostituta é pisoteada e chutada no rosto durante uma suruba em um bordel de última categoria; há uma sugestão (sem tanta ousadia) de uma parceria homoerótica entre os personagens de Matheus e de Caio Blat, com tomadas de cima de seus corpos e seus pênis bem exibidos; há cenas de maracatu, diálogos entre prostitutas, um sujeito cavando uma fossa ao lado da casa do velho que explora a mocinha... enfim, uma mistura desorganizada de forma certamente intencional, talvez visando sugestões mais interessantes do que de fato conseguem provocar e que não resultam em nada mais conseqüente, até porque o ritmo do filme é claudicante e as intenções e significados do que é explorado nas cenas permanecem vagos no disfarce da sintaxe modernosa que tem feito o delírio de cinéfilos formalistas que se opõem aos “conteudistas”. Esquece-se que o que era aparente naturalidade e fluência (no neo-realismo de Rossellini, por exemplo) está sendo mal imitado em uma já nem tão recente onda de neo-naturalismo rasteiro e sem transformação em qualquer coisa que se aproxime de uma linguagem artística ou dramática instigantes e de fato criativas: o que antes surpreendia como originalidade e mesmo verdadeira genialidade está reduzido à busca de épater através do escândalo pelo escândalo.
Cabe uma digressão: quando enquadramentos preciosistas em “profundidade de foco” nos clássicos de William Wyler ou de Orson Welles mereciam análises detalhadas de André Bazin, não era bem a técnica do grande fotógrafo Gregg Toland que estava sendo louvada, mas o uso dramático da modalidade como parte da sintaxe do filme e como recurso de linguagem escolhido pelos cineastas, adequando a forma ao que estava sendo tratado e que precisava ser resolvido como narrativa em imagens. Em Baixio das Bestas, o que pode existir de mais expressivo nasce da fotografia de Walter Carvalho, mas modos de filmar que, no passado, podem ter sido novidades utilizadas como modos de expressão cinematográficos, hoje podem estar sendo repetidos por vários diretores como recursos formais banalizados, sem função específica nem sentido dramático mais pertinente. Não é com bons cortes e uma câmera (às vezes) fluente que se atinge um resultado suficientemente satisfatório em um filme como este, bem decepcionante para o que se poderia esperar do diretor de Amarelo Manga, onde – de alguma forma – outras imagens chocantes e personagens anéticos se articulavam em um roteiro e narrativa que pareciam dizer mais a que vieram.
Desta vez, retratar por retratar em uma dimensão “um por um” (ou seja, sem dimensionar nada do que exibe) soa como questionável álibi para chocar e enganar incautos quanto à “coragem” do filme. A propósito, uma discussão flagrada na saída da sessão: três senhorinhas falavam sobre o filme através de clichês elogiosos quando outro espectador perguntou-lhes o que haviam conseguido apreciar. Uma delas quebrou um certo silêncio perplexo que se estabeleceu entre elas, dizendo que o filme era “muito cru”, com um tom condescendente pelo qual sugeria que o outro não suportara a “crueza” do filme. Ao que ele respondeu: “Filme pornô também é cru e não é bom cinema. Basta ser “cru” para ser bom, minha senhora?” E saiu vociferando contra a “filosofia profunda” da frase dita para a câmera mencionada na abertura deste texto. Outros momentos que se pretendem inteligentes do filme mostram repetidamente insetos em vasos de formol (citação empobrecida de fixações em filmes de Buñuel?) e bóias-frias que trabalham nas plantações de cana - e que são vistos insistentemente (tal como as prostitutas) sem participarem diretamente da ação. Espera-se que não sejam “metáforas” simplórias sobre profissionais prostituídos e de pessoas reduzidas ao estado animal. O pior é que talvez sejam mesmo."

airtonshinto said...

DANIEL SCHENKER WAJNBERG , do site Criticos.com.br:
""Acabou-se o respeito", constata Heitor, personagem de Baixio das Bestas que, porém, está entre os mais envolvidos com uma absoluta deformação de valores, bastando dizer que explora sua neta, a adolescente Auxiliadora, ao tirar regularmente sua roupa diante de caminhoneiros em passagem pela região, na Zona da Mata de Pernambuco. A "podridão do mundo" desponta como o "tema" deste novo filme de Cláudio Assis, que não traz propriamente uma história e se expressa, sobretudo, através da câmera de Walter Carvalho.
Não é por acaso que Heitor aparece de costas ao fazer seu comentário e que sua imagem frontal só seja registrada na mesma cena quando ele muda de assunto. As opções do diretor e do diretor de fotografia ficam bem marcadas ao longo da projeção e não se revelam, claro, aleatórias. Na primeira passagem em que o avô despe a neta diante dos caminhoneiros, a câmera começa fechada nos dois personagens e depois vai abrindo de modo a mostrar o grupo de homens que a espiona; na segunda, o movimento é inverso, com a câmera movendo-se dos caminhoneiros em direção à Auxiliadora e a Heitor, que, demonstrando controle (ainda que este pareça prestes a escapar de suas mãos), determina o fim da apresentação e o corte da cena ao decidir, subitamente, que "acabou, Auxiliadora, vamos para casa".
Este poder de decisão talvez possa ser conectado à outra fala – "Sabe o que é melhor no cinema? É que no cinema você pode fazer o que quiser" –, dita pelo agroboy Everardo, de frente para a câmera e, conseqüentemente, para a platéia. Cláudio Assis faz o que quer, mas com fundamento. Filma do plano aberto para o fechado, e vice-versa, de fora para dentro e, principalmente, de cima para baixo, talvez com o intuito de confrontar o público com uma visão panorâmica de um universo específico, recortado, formado, basicamente, por exploradores e impotentes. Além de descortinar um painel humano desolador, o diretor investe num registro seqüenciado de espaços arruinados, mas dotados de personalidade: os escombros de um cinema, onde jovens se masturbam, estupram prostitutas, vociferam contra o mundo e assistem a Oh! Rebuceteio , filme pornô de Cláudio Cunha, de meados da década de 80; um prostíbulo decadente, habitado por mulheres revoltadas com a sua condição e/ou agressivamente integradas a ela; e uma casa repleta de quadros sugerindo lembranças afetivas.
Há ainda diversas opções evidenciadas na câmera de Walter Carvalho: a alternância entre imagens focadas e desfocadas dentro da mesma cena, a exemplo da passagem em que Auxiliadora, aparentemente absorta no mundo da televisão, é retirada dele quando Heitor entra no seu foco e a força a "voltar" à sua realidade; o repetido close no rosto dela dentro da kombi; a luz em alguns atores/personagens (nem sempre nos que estão mais próximos da câmera); as vozes em off; e os constantes resmungos e murmúrios. Cláudio Assis também buscou uma estrutura rigorosa, circular, conduzida pela rotina dos trajetos e pelo ciclo da cana de açúcar.
Mas a força principal do filme reside no trabalho do elenco. Caio Blat apresenta um misto de ódio e infantilidade (na projeção no Everardo de Matheus Nachtergaele), Mariah Teixeira transmite expressividade no silêncio concentrado de Auxiliadora, Marcelia Cartaxo e Hermila Guedes marcam com força a primeira cena no bordel, Dira Paes procura tirar partido de uma personagem assumidamente despudorada e Conceição Camarotti potencializa a imagem da cafetina decadente. No entanto, Irandhir Santos e Fernando Teixeira estão especialmente bem na apresentação de interpretações orgânicas devido à habilidade com que ocultam seus trabalhos de construção de personagem.
Filme polêmico, como seria de se esperar do realizador de Amarelo Manga , Baixio das Bestas dividiu opiniões na última edição do Festival de Brasília, de onde saiu vencedor com os Candangos de melhor filme, atriz (Mariah Teixeira), atriz coadjuvante (Dira Paes), ator coadjuvante (Irandhir Santos), trilha sonora e prêmio da crítica. "

airtonshinto said...

BERNARDO KRIVOCHEIN, do site Zeta Filmes:
"Dentro da cabine de projeção de um cinema abandonado, após a enésima discussão misógina entre amigos agroboys, seguida por mais outra explosão de fúria de Cícero (Caio Blat) – e as cenas entre esse grupo parecem seguir tal padrão – Everardo (Matheus Nachtergaele) quebra a quarta parede e declama: “Sabe o que é bom no cinema? No cinema, você pode fazer o que quiser”. Ora, se no cinema pode-se fazer o que quiser e o que Cláudio Assis quer fazer é um filme, basicamente, sobre uma sociedade nordestina machista que patrocina os abusos sofridos pelas mulheres, logo é correto dizer que Assis é parte importante desse problema – ao que “Baixio das Bestas”, que é banhado em momentos de tremenda subjetividade como o mencionado, toma o assunto como um problema, claro. Se o cinema é auto-indulgência, segundo as palavras do próprio Assis (tá no filme, ora!), logo os momentos em que a adolescente Auxiliadora (Mariah Teixeira) ou a arrogante prostituta Bela (Dira Paes) são abusadas não são para chocar ou se lastimar, mas, sim, apenas tara de seu autor. Prostituição, abuso infantil, violência, todos esses problemas socialmente justificam seu retrato árido e espinhoso, mas Assis sabe que se não fosse neles que ele encontrasse o choque, ele partiria agora mesmo para onde quer que fosse para localizá-lo. A parada do diretor é essa: chocar, chocar, chocar. A qualquer custo, o tempo todo. Desafio você a procurar um significado mais profundo (ou o significado real, já que estamos nessa) dentro da cena em que Jonas Bloch leva uma escovada no cu em “Amarelo Manga”. Não há: a cena está ali para espantar apenas. Acabou fazendo rir. Mas nem tanto assim.
Logo “Baixio das Bestas” não vem revelar, iluminar ou polemizar: apenas reforçar que o cinema brasileiro num todo, apesar de vestir a camisa do feminino, de defensor da mulher (que é fraca e oprimida por natureza, logo precisa de um príncipe valente na forma de um cineasta) tem a mulher sempre, e eu estou dizendo Sempre, como puta. “O Céu de Suely”. “Anjos do Sol”. “Baixio das Bestas”. “Deserto Feliz”. Estou me esquecendo de mais algum? Devo estar. Afinal só estou mencionando os filmes que as têm como protagonistas. Considerasse a profusão de prostitutas em papéis secundários, eu teria que cortar e colar no texto todos os projetos cinematográficos aprovados desde não sei lá quando. Há algo certamente curioso que interliga “Baixio das Bestas” e “O Céu de Suely”, além do óbvio, claro: ambos os filmes, patrocinados pela Petrobrás, trazem como cenário um posto de gasolina que serve como ponto de prostituição. Afinal, os cineastas também tiveram que “rodar bolsinha” para conseguir que seus filmes fossem financiados, simpatizando-se com a condição de suas personagens. Nos filmes, os clientes – ou a Petrobrás – são vistos como desprezíveis, que reduzem a prostituta – ou o artista - a um mero prestador de serviço, desalmado, indigno de ter um caráter a ela conferido. A prostituta/artista o despreza, mas não vê problema nenhum no dinheiro que o cliente/Petrobrás lhe dá. Assis já disse abertamente que não gosta dos logotipos das empresas patrocinadoras surgindo na abertura do filme porque assim eles o sujam.
Vou fazer uma pergunta abertamente para quem está lendo (eu devia me dar mais a esse luxo, não é como se nada que eu escrevesse fosse para a posteridade de qualquer jeito): você não tem a impressão de que, quando assiste ao novo filme brasileiro, está assistindo sempre ao mesmo filme? E um filme que não era lá muito bom, a princípio de conversa? A mim, assim me parece e vou cometer a ousadia de tentar me fazer entender. O cinema de Cláudio Assis não é parecido nem compartilha incômodos estético-narrativos com o de seu amigo Beto Brant; seu cinema é idêntico, i-dên-ti-co, ao de Walter Salles, que imagino considerar seu nêmesis espiritual. Em bulletpoints, exponho minha perspectiva (aliás, ela pode ser questionada e destruída; não é uma arquitetura firme):
- No Brasil, nordeste é sinônimo de sertão e sertão sinônimo de pobre (vamos lá, gente: sem hipocrisia agora);
- A classe média-alta burguesa metropolitana acha pobre tudo feio e, bem... pobre;
- Walter Salles, que tem mais grana do que toda a classe média-alta burguesa somada, por culpa de menino rico num país subdesenvolvido ou por exercício da virtude segundo Focílides, quer absolver o pobre da visão geral que lhe é atribuída e impõe uma visão romântica desse pobre: enfia filtro de tudo o que é jeito – literal e metaforicamente. O sertão vira uma salada de frutas e cenário de histórias edificantes;
- Classe média-alta burguesa, que admira tudo o que mais rico gosta, vê que Salles gosta de pobre. Agora, classe média-alta burguesa gosta de pobre. Sertão agora não é mais pobre, é cult;
- Um cambada de cineastas comparsas metropolitanos fazem a limpa nos editais de patrocínio com seus filmes de Pobresertãocult. Detalhe: nenhum deles é nordestino. Filmando um sertão poético e exótico, os filmes poderiam muito bem ter sido feitos em Marte e ninguém notaria a diferença;
- Os cineastas nordestinos, como era de se esperar, vêem esses filmes e se indagam: mas que caralho de visão é essa que eles têm da gente? Esses filhos da puta não fazem a menor idéia dos problemas sócio-econômico-culturais que assolam a região, tais quais et cetera (não sou do nordeste, não cometeria a ousadia de tentar diagnosticar os problemas da região);
- Os cineastas nordestinos, como é bem do direito deles, fazem os filmes na raça para acabar com a alienação geral de quem acha o sertão romântico e revelar a verdadeira faceta do nordeste, uma faceta desglamourizada, com narrativas que remetem ao realismo/naturalismo, determinismo social, o homem é fruto do meio em que vive, podridão, crueldade, e por aí vai;
- Classe média-alta burguesa continua sendo a única que tem interesse o bastante para pagar para freqüentar filmes brasileiros;
- Classe média-alta burguesa, que achava pobre cult, volta a achar pobre feio e, bem... pobre.
Se a semelhança entre os dois cinemas não ficou clara é porque ambos consideram o espectador um indiferente desatento e saem em busca de revelar-lhe as verdades do Nordeste: um, suas beleza através da exacerbação da simplicidade, o outro seu submundo degenerante. A grande questão aqui é que talvez o cinema de Assis, nessa cruzada pelo despertar do espectador da alienação poética-culpa-de-rico, esteja aqui apenas para confirmar os preconceitos que a classe média-alta burguesa metropolitana já tinha logo de início. Ele tem um ponto de partida que não é equivocado. Nunca me esqueci do que Yukio Mishima escrevera no livro “Confissões de uma Máscara”, farei uma paráfrase: rico gosta de pobre, porque acha pobre trágico. Mas o filme ainda preserva o perigoso cuidado de trazer imagens inspiradas, que refletem um olhar poético que resiste a toda podridão que a circunda, um “olhar de rico”, além do já tradicional plano Deus-vision em que a câmera sobrevoa a arquitetura do puteiro enquanto acompanha de cima o estupro da prostituta, um olhar superior, julgador, distante, mas não exatamente passivo, porque atravessa paredes para manter-se up-to-date. Ou quando expõe publicamente o corpo desnudo de Auxiliadora como se fosse o máximo da degradação, apenas para, em seguida, continuar a fazê-lo enquanto a coitada toma um banho de rio. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço, talvez?
Filme bem feito sobre uma sociedade malformada, a impulsividade de “Baixio das Bestas” resulta numa obra cheia de energia, mas de raciocínio precipitado, até ingênuo. Mais uma vez, o surgimento do próprio Assis no filme além de ser uma distração da porra, falha em ser uma autocrítica para revelar enfim o tamanho tesão que ele sente ao ver miséria – sem conseguir resistir, não lhe basta filmar, mas lançar-se às suas próprias imagens, participar, apalpar. Só falo em nome de alguns quando digo que já ficou chata essa história de cinema brasileiro e tá na hora de renovar. Engajar o espectador numa luta por mudanças sociais certamente não é algo que o filme busque (mas me engajou numa busca por mudanças no cinema nacional), a denúncia também é enfraquecida porque não é algo que a gente realmente não saiba há muito tempo (só fazemos ouvidos surdos, mas não completamente) e eu poderia fazer como os ricaços e posar de chocado após a sessão apenas para ir dançar no puteiro no rega-bofe pós-première (um evento só revelou a filosofia confusa e conflitante por trás do filme), mas não consigo. Quem me dera que um diretor iniciante surgisse e fizesse um filme completamente despirocado na montagem, no conteúdo, na narrativa e que fosse um completo fracasso em todos os sentidos (estético, lucrativo...), mas que pelo menos trouxesse algo de diferente, algo de realmente ousado, porque mundo cão, amigo, o público já vive nele e nesse seu revelar revolucionário, vocês só estão ensinando o padre a rezar missa. Fica a impressão que o problema do Brasil não é a prostituição, a violência, a corrosão do sistema de classes ainda provinciano, mas o sexo e Assis a nossa Catherine Breillat tupiniquim (aff!). Então o nordeste tem suas belezas, suas paisagens, sua simplicidade, seu pôr-do-sol híperalaranjado, OK; e também tem sua miséria, sua injustiça, a violência contra mulheres e crianças, OK também. Então o Brasil é uma terra de contrastes, perfeito, a gente já entendeu. Agora quero ver saber contar outra. "

airtonshinto said...

LEONARDO LEVIS, do site Contracampo:
"Há, em Baixio das Bestas, novo filme de Cláudio Assis, uma contradição insuperável, que, levada ao limite pelo diretor, explica boa parte dos problemas do filme e revela o fracasso de seu projeto. De um lado, temos a necessidade de “denúncia social”, da revelação da existência de um local desgastado e destruído no Brasil, onde a podridão da natureza humana, justificada por nossa enorme desigualdade econômica, aflora de forma inconteste e chocante. De outro, a vontade de afirmar-se de vez como um “bom diretor”, através de ângulos e movimentos de câmera inusitados, da luz meticulosamente calculada de Walter Carvalho, de chamadas metalingüísticas “inteligentes”, de atores previamente marcados de forma quase coreográfica no espaço do quadro. Isto poderia não funcionar como uma contradição caso, no processo do filme, estivesse presente um questionamento sobre como representar uma realidade perturbadora e inédita aos olhos da maioria dos espectadores, sobre os limites possíveis dessa representação e sobre o quanto desta realidade pode realmente chegar, distante física e temporalmente, marcada pelo filtro da criação ficcional, aos nossos cinemas. Mas Baixio das Bestas não é um filme de questionamentos, e sim de imposições. Dito isto, cabe, agora, ao crítico perguntar: ao ter como objetivo maior denunciar um mundo existente, como o filme pode construir este mundo de acordo com a vontade suprema do diretor?
Pois não interessa nesta crítica se é mesmo verdade que na Zona da Mata playboys de classe média passam seus finais de semana estuprando prostitutas simplesmente porque podem, ou se menores de idade são levadas ao caminho da prostituição por seus parentes para ajudar no sustento da família, ou mesmo se essa situação recorrente parece não ter uma solução imediata. As estatísticas, as pesquisas de jornal ou alguns artigos acadêmicos podem confirmar essa situação ou não. O que importa é que, para que Claudio Assis pudesse mergulhar realmente neste mundo de degradação humana que ocorre ao nosso lado, para que pudesse tratar desta realidade com um mínimo de profundidade e respeito, seria necessário que se entregasse a ela. Mas, talvez por falta de coragem (pois existe uma dificuldade enorme em penetrar naquilo que não oferece subterfúgios, e é a aceitação e confrontação desta dificuldade que muitas vezes nos dá o melhor cinema) ou mesmo por soberba, o cineasta prefere o caminho mais simples: se existe uma realidade chocante, devemos manter o choque, não a realidade. E essa estética distanciada do choque como caminho único para se chegar à sordidez do homem normalmente envolve escolhas muito rasas.
É nesse sentido que Baixio das Bestas não procura investigar um mundo, já que revela em sua construção o mais absoluto didatismo. Claudio Assis não se arrisca, ele já sabe, de antemão, tudo o que vai acontecer. Por isso, os personagens precisam ser sempre tipos imóveis, que, desde suas primeiras falas, já podem ser identificados: o jovem agroboy que passa os finais de semana bebendo, transando com prostitutas e se utilizando de seu poder econômico e social; o amigo mais velho, que faz as mesmas ações sob um discurso de liberdade e de quebra de convenções; o avô moralista e safado que protege e prostitui a neta; a prostituta pudica; a prostituta safada; e por assim vai. Não há mudança, não pode haver. Não porque esta realidade seja estagnada, mas porque cada tipo não pode fugir àquilo que deveria servir: o mundo de Cláudio Assis. E não bastam os supostos improvisos nas falas e movimentos dos atores. É preciso que eles funcionem sempre nesse tableau criado pelo cineasta, onde existem aqueles que merecem simpatia, e aqueles simplesmente nojentos, num juízo de valor anterior ao filme, pois temos de ser didáticos, sempre. Talvez por ser uma não-personagem que Auxiliadora, a protagonista, se saia melhor. Ao ficar impávida e impassível do início ao fim, ela continua a funcionar como um tipo imóvel, mas menos identificável. O controle é o mesmo, a resposta não cai em tanta obviedade.
Infelizmente, todo o resto do filme cai. Por isso, também, os diálogos, que deveriam levar à reflexão, normalmente não passam de um amontoado de frases de efeito, que, ou reforçam aquilo que já vemos na tela (como nas conversas entre o tio e seu amigo antagônico), ou parecem simples brincadeiras de criança (como nos momentos em que Matheus Nachtergaele resolve dizer algo profundo, de preferência de frente para a câmera). Por isso, o diretor pode repetir, de forma um tanto gratuita, seus tiques de estilo, que em dois longas já podem ser reconhecidos (o mundo é dele, naturalmente, e, portanto, nada muda). Por isso, várias cenas parecem coreografias, onde cada ator tem de ficar em um lugar específico, para que a luz bata de forma perfeita em seu corpo, de forma que o momento tenha a força e o choque necessários. Desde o primeiro plano de ação do filme, no qual o afastamento da câmera a partir do corpo nu e semi-iluminado de uma menina revela um bando de homens se masturbando, até chegar ao rosto de Caio Blat, delirando, para finalizar com um novo movimento de câmera até a igreja, é este formalismo paralisante e parasita que marca o filme inteiro.
Pois a maior das distâncias entre a realidade que se quer denunciar e a vontade demiúrgica de Claudio Assis talvez resida na plasticidade da fotografia de Walter Carvalho. Ao optar por trabalhar novamente com esta fotografia de “grife” (até porque, ao contrário do trabalho que desenvolveu com um Karim Ainouz, por exemplo, em Baixio o fotógrafo repete as características que o deixou famoso e renomado), o cineasta talvez não tenha se atentado para o fato de que, em seu projeto, essas características não caibam. Não por utilizar o “belo” para chegar ao sórdido, mas porque os planos estetizantes, com luzes previamente marcadas em cada canto da tela, movimentos de câmera totalmente estudados, enquadramentos marcantes, reforçam de forma ainda mais clara o controle sobre um mundo que precisa ser sempre visto de fora para ser filmado. Não existe vida possível em Baixio das Bestas, pois o filme não se importa em chegar a ela. É preciso que a realidade – complexa, difícil, feia e inexplicável – não atrapalhe o caminho do cineasta de se chegar à realidade. Quando muito, aceita-se um plano mais documental, uma cena um pouco mais livre, desde que isso não influencie de forma negativa aquilo que se quer mostrar.
Para Assis, o homem é um bicho escroto. Para Assis, a sociedade brasileira, em sua desigualdade, revela, diariamente, os frutos dessa miséria. Não importa se em Recife, na Zona da Mata ou onde quer que filme, é isso que ele vai afirmar. Infelizmente, em Baixio das Bestas, nem nos cabe discutir a validade desta afirmação. Situada fora do mundo, não passa de um pensamento egocêntrico do diretor. Se, como forma de entender o mundo, portanto, Baixio interessa pouco, como cinema, infelizmente, interessa menos ainda. Um filme acima da humanidade não tem como alcançar humanidade alguma. "

airtonshinto said...

MARCELO HESSEL, do site Omelete:
"Seja na capital ou no campo, o desencanto com a paisagem humana é o mesmo. Depois de nos apresentar aos instintos mais baixos dos recifenses em Amarelo Manga, o cineasta pernambucano Cláudio Assis mostra em Baixio das Bestas que a perspectiva na Zona da Mata não é muito melhor. Especialmente porque ali o tempo - o senhor de qualquer mudança - não passa.
Caminhões com a carga da cana-de-açúcar cortada atravessam a cena o tempo inteiro. É o indicativo de movimento. Já quem mora na vizinhança da Usina Cruangi, e não está de passagem, nasceu e morrerá no mesmo lugar. Tem o velho que cuida da neta incorporando, ao mesmo tempo, o carcerário, o cafetão e o incestuoso. Há os agroboys que passam o dia batendo punheta no cinema abandonado. E as prostitutas que passam a tarde esperando ansiosas pela orgia da noite. Com os caminhões, outro único indício de evolução: a plantação de cana que cresce, amadurece, colhe-se e queima.
Você pode chamar Cláudio Assis de putanheiro e mal-intencionado, mas não pode dizer que ele desconhece o que está fazendo. O cineasta e a sua equipe dominam câmera, lente e corte. Com as tomadas fixas no tripé, atores no meio do plano sem muita movimentação, enquadrados com rigor, ele nos transmite o engessamento do tempo de forma limpa. Com a opção pelo formato cinemascope (lente que alarga as horizontais, para fazer o filme caber na tela inteira na hora de exibir), ele apequena ainda mais as pessoas na paisagem fixa. Com a montagem dinâmica, contrapondo planos gerais da plantação e da estrada à encenação propriamente dita, ele nos mostra que o tempo está, sim, passando. É só aquela gente vil do baixio, com referencial corrompido, que não vê.
A certa altura o agroboy vivido por Matheus Nachtergaele, na cabine de projeção do velho cinema, olha para a câmera, para nós, enquanto fuma seu baseado, e solta: "o bom do cinema é que você pode fazer o que quiser". Poder, pode - a questão é saber como. Assis amadurece do primeiro para o segundo longa, mas não dá pra dizer que ele virou um acadêmico - com sorte, jamais se dirá. A prioridade é a controvérsia, e tome nudez, palavrão, violência. Homem nasceu mesmo para o mal. Dramaturgicamente, cria-se até um impasse: não há surpresa possível quando os personagens fazem o que já se espera deles."

airtonshinto said...

IGOR VIEIRA, do site Cinema com Rapadura:
"Em uma cidade no interior de Pernambuco, Seu Heitor (Fernando Teixeira) leva a neta, que mal completou 16 anos, ao posto de gasolina na entrada do município para exibi-la aos caminhoneiros que ali estão de passagem. Os homens pagam uma quantia em dinheiro para observar Auxiliadora (Mariah Teixeira) nua. Mas o avô, que dizem as más línguas ser também o pai da garota, é um falso moralista que ainda abusa sexualmente dela.
Cícero (Caio Blat) é um jovem abastado que estuda no Recife e aos finais de semana vai visitar os pais. Vivendo de bebidas, drogas e orgias com o seu amigo Everardo (Matheus Nachtergaele), ele desenvolve uma obsessão pela jovem Auxiliadora. Essas são as tramas principais que se desenrolam em “Baixio das Bestas”, segundo longa de Cláudio Assis.
Mais uma vez o diretor opta pelo submundo e pelo lado perverso do ser humano. A quem possa reclamar do excesso de violência física e psicológica em cena, Assis dá o seu recado. Em determinado momento, Everardo olha para a câmera e diz que o melhor do cinema é que “no cinema tu pode fazer o que tu quer”. É certo que existem algumas cenas gratuitas, mas na maioria delas, o cineasta consegue causar o incômodo necessário sem ultrapassar limites. Um exemplo disso é a seqüência em que vemos, através das sombras projetadas na parede, Everardo e sua turma estuprando a prostituta Bela (Dira Paes). A cena é de uma beleza terrível e os méritos vão todos para a fotografia de Walter Carvalho.
Aliás, Cláudio Assis tem preferência pelas sombras. Sua câmera acompanha os personagens na penumbra e escuridão como se delas fizessem parte. A câmera também é fixa, sem gerar envolvimento com a ação transcorrida e por conseqüência compaixão aos personagens. A única que desperta qualquer sentimento positivo no público é a jovem Auxiliadora. Impossível ficar indiferente logo no início quando vemos seu avô tirar-lhe as roupas e aparecer não um, nem dois, nem três, mas uma dúzia de caminhoneiros se tocando. A pobre criatura indefesa sozinha na selva com um bando de predadores à espreita.
Algo que chama a atenção é a fotografia limpa. Ao contrário do que era de se esperar pela temática abordada, as cenas não desagradam aos olhos com imagens sujas e granuladas. Talvez possa ser uma tese do diretor que a podridão do mundo não esteja no mundo em si, mas dentro das pessoas, capazes dos piores atos de violência, seja ela de que nível for. Seres humanos transformados em animais, verdadeiras bestas como sugere o título.
“Baixio das Bestas” traz na presença feminina a força que elas representam no Nordeste. Enquanto os homens passam o dia bebendo, fumando, fornicando, brincando maracatu e mantendo hábitos esquisitos, são as mulheres que sustentam a casa e botam ordem na situação. Seja comandando um bar, lavando roupa para fora ou mesmo se prostituindo. É assim com Auxiliadora, com Bela e as outras moças do bordel, com a mãe de Cícero e com a dona do bar próximo ao posto de gasolina.
Tão intensas como os personagens, são as atuações. Viscerais e cruas, elas ajudam a criar o clima de zoológico humano. Todos se saem bem, inclusive Caio Blat, diria uma amiga. O elenco tem nomes globais conhecidos e reconhecidos como Nachtergaele e Dira Paes e outras presenças fortes do cinema nacional como Hermila Guedes, Marcélia Cartaxo e Irandhir Santos.
Este é ao mesmo tempo um filme para poucos e para todos. Uma produção que poucos têm estômago para suportar até o fim, mas que todos merecem assisti-la. Sem qualquer pretensão de ser um filme-denúncia ou propor a solução para as situações retratadas, o filme de Cláudio Assis vai fundo naquilo que se propõe. O constrangimento dos espectadores pelo exposto e por imaginar que levados ao limite, qualquer um poderia agir da mesma forma. Mostrando que o tempo corrói o que de bom poderia existir em cada um de nós, “Baixio” é um ótimo exemplar do cinema nacional que diverge do produzido pelas grandes indústrias do entretenimento."

airtonshinto said...

ESTEVÃO GARCIA, do site Almanaque Virtual:
"Baixio das Bestas (2006) é um rico material e um importante registro não só por ao longo de sua projeção indicar os possíveis futuros passos de um diretor como Cláudio Assis, como também por servir de excelente ponto de partida para uma análise do atual “estágio” de nossa cinematografia. Ao longo da década de 90 muito se falou que o cinema brasileiro estava incrivelmente burocratizado esteticamente e que as brechas que o mercado cinematográfico oferecia para experimentações e narrativas mais ousadas eram praticamente nulas. O nosso cinema na medida em que estava ficando cada vez mais correto e certinho tecnicamente estava se tornando mais “careta” e conformado. As experimentações formais e a fuga do lugar comum pareciam ser no cinema brasileiro dos anos 90, salvo algumas raras exceções, privilégio de realizadores veteranos: Ozualdo Candeias (O Vigilante, 1992), Carlos Reichenbach (Alma Corsária, 1993), Julio Bressane (Mandarín, 1995 / Miramar, 1997), Rogério Sganzerla (Tudo é Brasil, 1998) e Ruy Guerra (Estorvo, 1999). A necessidade de buscar e pensar novas formas de financiamento para viabilizar as produções e para evitar uma nova “paralisação” fez com que o epicentro das discussões se localizasse nas questões relativas ao mercado. A forma do filme e a sua qualidade como expressão cinematográfica ficaram em segundo plano. O importante era fazer com que a produção de filmes no Brasil permanecesse “estável” e que ela enfim encontrasse o seu público.
“Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, nesse ponto foi um marco a ser tomado como paradigma de um cinema brasileiro “perfeito”, técnica e artisticamente, e que ainda foi capaz de levar o “público” às salas de cinema. O espectador comum (de classe média) repleto de preconceito em relação ao cinema brasileiro, agora poderia comprar o seu ingresso tranqüilo sabendo que ao sentar na poltrona iria se emocionar e não mais ver “palavrão e mulher pelada”. O aspecto certinho e higiênico de um tipo de cinema tido naquele momento como o mais apropriado a ser feito no Brasil estava todo ali. Esse era o pré-requisito para atrair o espectador de cinema brasileiro dos anos 90, totalmente diferente do espectador dos anos 70/80: ser ”artístico”, ou melhor, ser “belo” e de fácil digestão.
Chegamos, então, ao embate interno travado em Baixio das Bestas: de até que ponto a preocupação em ser “artístico”, em ser exato e preciso na construção de uma estética pode interferir e domesticar a sua agressividade. O visceral está necessariamente associado a uma idéia de “instinto” ou “desorganização”? Calcular milimetricamente o ritmo e o mecanismo interno dos planos implicaria em uma gradual perda da autenticidade/virulência da imagem? A princípio não. A resposta provavelmente está no uso e na medida, principalmente, dos ingredientes utilizados. Se Baixio das Bestas pode ser considerado um “avanço” ou uma “evolução” estética em relação à “Amarelo Manga” (2002), ele também pode ser compreendido como um retrocesso conceitual. Não é suficiente apontar como as cenas em Baixio das Bestas estão melhor dirigidas ou decupadas ou fotografadas do que em “Amarelo Manga”. Sem dúvida, a parceria entre Cláudio Assis e Walter Carvalho está aqui mais amadurecida e afinada. O que percebemos é que ao mesmo tempo em que houve um passo dado para frente em relação ao “como” filmar, ocorreu um passo dado para trás em relação ao “que” filmar.
Em “Amarelo Manga” tudo parecia estar mais coeso, coerente e em estado bruto. Uma percepção do mundo e da humanidade com todos os seus impulsos mais animalescos estavam ali, organizados e distribuídos como não poderia deixar de ser, pela forma do filme. Porém, não a ponto de que a forma que os organiza também os devore. Em Baixio das Bestas o “como” é grandiosamente maior do que o “que”. Exemplo: na seqüência do cinema desativado em que os três rapazes vão violentar a prostituta interpretada por Dira Paes, o ato nos é mostrado através de sombras. Não interessa mais aqui explicitar a violência e sim torná-la bem feita. As sombras representam o rigor artístico, a construção calculada e, ao mesmo tempo, a fuga do cru e do abjeto. Elas, as sombras dessa seqüência, nos dão a medida exata do que “pode” e do que “não pode” no cinema brasileiro mais “transgressor” dos anos 2000. Nele, algumas passagens “subversivas” são permitidas, mas só até um certo ponto. Se no cinema da Retomada da década de 90 a transgressão era um elemento praticamente ausente, hoje ela existe, porém, em doses controladas.
Cláudio Assis fala através do rosto de Matheus Nachtergaele quando ele olha para a câmera e diz “o mais legal no cinema é que aqui a gente pode tudo”. Não é bem assim. Rogério Sganzerla em “Sem Essa Aranha” (1970) ao transplantar para o cinema a imagem de uma mulher enfiando uma garrafa na vagina (na luz e não nas sombras) sabia que a sua atitude ética/estética em relação a essa imagem implicaria na não vinculação pública de seu filme. Ele optou por ir até o fundo e não tornar o seu filme mais palatável. Hoje, os tempos são outros, não temos mais “aquela” censura que impediria a polêmica cena do “Sem Essa Aranha” de passar e sim um outro tipo de censura, que também a impossibilitaria de passar: a censura do mercado ou a censura do “bom gosto”. As distribuidoras e o mercado exibidor sempre tiveram os seus limites, mas atualmente eles aparentam nunca terem sido tão inflexíveis.
Baixio das Bestas quer ser explícito e escancarado, mas não pode. Ele só consegue ser explícito através de um cinema brasileiro que já não existe mais: “Oh Rebuceteio!” (1984), de Cláudio Cunha. O filme de Cláudio Assis recorre às imagens de um tipo de filme rechaçado e desprezado pela História oficial do cinema brasileiro e pela crítica especializada de “bom gosto”. Essas imagens estão no lixo, não pertencem à nossa memória. Elas estão danificadas em um cinema desativado empoeirado a ponto de se perderem para sempre. Cláudio Assis então recupera “Oh Rebuceteio!” em um misto de homenagem e inveja por não poder ser como ele.
É certo que o seu cinema apresenta pontos de contato com um determinado cinema brasileiro popular da década de 70 e talvez isso seja um de seus maiores diferenciais. Houve quem disse na ocasião da estréia de “Amarelo Manga” que há muito não se ouvia em nosso cinema um palavrão ser dito com tanto gosto. De fato, nos filmes de Cláudio Assis, diferentemente da maioria dos filmes da Retomada pra cá, há muito “palavrão e mulher pelada”. No entanto, não é apenas isso que os conecta aos filmes populares dos anos 70 e início dos 80. Há entre eles uma específica aproximação com o gosto popular e um olhar mais de dentro e íntimo direcionado a esse material. Assis aparenta ser um profundo conhecedor dos objetos que escolheu para retratar. O seu olhar é de quem fala de dentro, a partir das entranhas, das vísceras. O seu desejo de um cinema em que “tudo pode”, de um cinema demolidor de convenções, em nossa atual conjuntura acaba se transformando em simples retórica. Uma teoria que não chega à prática. O diretor, por mais deslocado que parecia ser, agora, opera uma adaptação mais contundente ao nosso cinema atual."